Não é sem ironia que justamente a pandemia de coronavírus leve o presidente dos EUA, Donald Trump, a tropeçar – logo ele que se considera um gênio e talento médico nato e se vangloria de saber muito sobre o vírus e suas consequências. No seu governo, no entanto, descobertas científicas são sistematicamente ignoradas, e cargos públicos na saúde são extintos. Agora vem a conta.
Ninguém poderia saber, dissera Trump, que haveria uma pandemia desse tipo. Ninguém exceto Luciana Borio, diretora de preparação médica e biodefesa do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Há dois anos, ela disse: "A maior preocupação é o risco de uma pandemia de gripe." Se alguém está preparado para algo assim? "Temo que não", respondeu. Isso foi um dia antes de o cargo dela e de seu chefe serem extintos pelo então conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton.
E os Estados Unidos não só estão realmente despreparados, mas também sobrecarregados na hora de reagir à crise emergente, embora Trump tenha dito o contrário em seu discurso à nação, esta semana. Existe uma falta crônica de testes para o vírus – o que também explica o número relativamente pequeno de pessoas (reconhecidamente) infectadas.
O primeiro conjunto de testes enviado pela autoridade competente não funcionava. Por semanas, o coronavírus pôde se espalhar despercebidamente no estado americano de Washington, por exemplo. A promessa de Trump de que qualquer pessoa que deseje pode ser testada teve que ser retirada imediatamente.
Também várias declarações em seu discurso – que ele leu no teleprompter – tiveram que ser corrigidas ou esclarecidas imediatamente por sua administração: não, mercadorias não são afetadas pela proibição de entrada que Trump impôs à Europa.
Não, as operadoras de planos de saúde não cancelaram a contribuição adicional individual para o tratamento de pessoas que sofrem de covid-19. E sim, os americanos que vêm da Europa estão tão isentos da proibição quanto os que possuem um green gard e seus familiares.
Em tempos de crise, é tarefa de um presidente tranquilizar a nação – especialmente por meio de declarações claras e inequívocas. Trump apenas espalha incertezas e caos. Suas mentiras desmoronam publicamente como um castelo de cartas.
A sugestão de Trump de que o muro na fronteira com o México seria mais necessário do que nunca em face de covid-19 foi prontamente corrigida pelo diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças. Um muro não ajuda contra um vírus. E, em comparação com os Estados Unidos, o México tem bem menos casos de covid-19.
E por que a exceção para o Reino Unido? As ilhas britânicas têm mais infecções por coronavírus do que alguns dos outros países europeus afetados pela proibição de entrada nos EUA.
Trump não se importa nem com lógica e fatos nem com pessoas – essa não é uma constatação nova, mas agora fica mais evidente do que nunca. Além de que o discurso dificilmente poderia ter sido proferido com menos empatia – outras declarações de Trump também desmascaram seu pensamento: ele disse que, se fosse por ele, as 3,5 mil pessoas a bordo do navio de cruzeiro Grand Princess, que ficou parado ao largo da costa de São Francisco, deveriam ter permanecido a bordo – pois o número de pessoas infectadas pelo coronavírus nos Estados Unidos pode vir a aumentar. E isso é algo de que ele não precisaria.
É bem possível que a pandemia de coronavírus leve a fachada de Trump a cair também para mais alguns de seus seguidores. Porque, ao contrário da ameaça abstrata de uma suposta caravana de migrantes, contra a qual apenas a construção de um muro para o México supostamente ajudaria, uma infecção por covid-19 é muito real.
Ela afeta vizinhos, amigos, parentes. E já está levando ao fechamento de escolas e universidades nos Estados Unidos e à quarentena de cidades. E se testes não estiverem disponíveis, se as pessoas não puderem ser tratadas adequadamente porque o sistema de saúde está sobrecarregado, então essas notícias se espalham como fogo em tempos de mídia social.
O coronavírus não se deixa impressionar com a retórica arrogante de Trump.
Mas não há motivo para alegria maliciosa. Porque o preço pelo fracasso do governo dos EUA é pago pelas pessoas para as quais o vírus se torna uma ameaça fatal.
Christina Bergmann foi correspondente da DW em Washington.
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