Quem se lembra do furor, quase exatamente um ano atrás, quando todas as casernas da Bundeswehr, as Forças Armadas alemãs, foram revistadas em busca de "relíquias" da Wehrmacht nazista? Armas, medalhas, partes de uniformes, modelos: tudo o que fosse dos tempos de Adolf Hitler de agora em diante não tinha mais lugar nas Forças Armadas da Alemanha.
O que restaria da sede da Volkswagen, em Wolfsburg, se lá fosse feita uma devassa do gênero? Pois – diferentemente das forças militares alemãs, que já existiam muito antes de Hitler – a montadora, o modelo Fusca, com seus longos anos de sucesso, e a cidade de Wolfsburg foram frutos exclusivos do desejo e vontade do "Führer".
Ele, que não tinha carteira de motorista, foi quem autorizou pessoalmente o projeto de Ferdinand Porsche. Foi ele quem mandou fundar a nova empresa, depois que nenhum dos fabricantes existentes quis produzir o automóvel segundo sua concepção e pelo preço ordenado. Ele estava naturalmente presente quando, há exatamente 80 anos, em 26 de maio de 1938, a pedra fundamental da fábrica foi lançada no – estrategicamente favorável do ponto de vista militar – centro do Reich Alemão.
O "Volkswagen" – "carro do povo", nome que já exala o cheiro da época – deveria ser a contraparte automobilística ao "Volksempfänger" (receptor do povo), o rádio acessível a todos, que passou a figurar nas cozinhas e salas de estar alemãs.
Porém isso nunca chegou a se tornar realidade, pois, antes mesmo de a fábrica estar pronta, o Volkswagen se transformou no "Kübelwagen", o veículo utilitário com que os soldados da infantaria alemã rodavam por toda a Europa e o Norte da África. Para os engenheiros da Porsche, não foi realmente uma surpresa, pois a aplicabilidade militar do carro já era parte dos planos desde o início.
Só no pós-guerra o Fusca de Hitler aprendeu a andar, e transformou-se, ironicamente, no símbolo da reconstrução após o conflito desencadeado pelo ditador mesmo. E rodou, rodou, rodou... Até a suspensão definitiva da produção, em 2003 (!), mais de 21 milhões de unidades deixaram as esteiras de montagem de diversas fábricas da Alemanha e ao México.
Tido como veículo confiável e indestrutível, ele no entanto quase levou à falência a empresa estatal (também uma herança hitlerista): por volta de 1970 cada vez menos clientes se dispunham a comprar a máquina mais do que tecnicamente ultrapassada, com sua tração traseira e motor boxer.
A Volks venceu a crise, roubando concepções automobilísticas modernas das marcas Audi e NSU, "conquistadas" poucos anos antes. Só assim foi possível colocar no mercado em tempo recorde os modelos Golf, Passat e Polo, cujo sucesso perdura até hoje. Graças a eles, a empresa se consagrou como maior montadora do mundo. Não, Hitler não é realmente responsável por isso – ainda que seja uma tentação aplicar a essa história a alegoria da "vitória definitiva".
Recentemente a ministra alemã da Defesa, Ursula von der Leyen, propôs um novo "decreto sobre a tradição" para a Bundeswehr. Ele tem dois princípios centrais: o que provém da época de Hitler não se coaduna com os valores nacionais, e portanto não pode promover a tradição. E a história após a Segunda Guerra Mundial já é longa o suficiente para fundar suas próprias tradições.
O que isso significa para a Volkswagen? Há muito se associam à marca produtos e ideias desenvolvidos depois de 1945. Sobretudo o Golf, que já ultrapassou há 16 anos o Fusca em termos de unidades produzidas – perfeito! Mas há três anos veio o escândalo de emissões – nada bom.
A Volks anunciou para 2019 uma reformulação de sua logomarca, a ser apresentada juntamente com uma nova série de veículos elétricos, "menos conservadora" e "mais colorida". Será que Wolfsburg vai mesmo renunciar às linhas angulosas do V e do W, dos tempos do culto ao "Führer", nos anos 1930? Dificilmente.
Até mesmo a Bundeswehr, apesar do novo decreto da tradição, ainda se apresenta com a mesma Cruz de Ferro que adornava cada tanque da Wehrmacht. Mas talvez o slogan "Das Auto" ("O automóvel") se transforme futuramente em "O automóvel limpo". Esse seria, de fato, uma maneira exemplar de lidar ao menos com o passado mais recente.
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