O racismo é um crime perfeito.
É com essa frase que o antropólogo Kabanguele Munanga, uma das maiores autoridades do Brasil em estudos raciais, define a estrutura racial que nos organiza: um crime perfeito.
Essa perfeição tem diversas camadas. Uma delas reside na enorme dificuldade que ainda existe entre brasileiros e brasileiras em reconhecerem o racismo ao seu redor e em si mesmos. Outra camada são os lugares que o racismo cria a depender da pertença racial do sujeito – lugares esses que fazem com que não achemos estranho (e tenhamos pouco ou nenhuma compaixão) com o fato de a maior parte da população em situação de rua ser negra, ao mesmo tempo que experimentamos uma verdadeira mobilização nacional quando um homem branco (considerado bonito pelos nossos padrões estéticos racialmente definidos) vive nessa mesma situação.
Mas a perfeição do racismo brasileiro pode chegar a sofisticações alarmantes, transformando literalmente, os algozes em vítimas e vice-versa.
O "bom velhinho" esfaqueador e o "perigoso" motoboy
No último sábado, 17 de fevereiro, a polícia foi chamada para conter um homem que que tentava esfaquear outro em plena luz do dia no Bairro Branco de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ao chegar à cena do crime, a polícia foi rápida e usou a "violência necessária" para imobilizar o motoboy Éverton Guandeli que resistiu àquilo que seria uma prisão em flagrante. Enquanto ele era encaminhado à força para a viatura policial, um alarde tomou as testemunhas, que gritavam: "Ele é a vítima, ele é a vítima!!"
Um senhor idoso, trajando apenas um short, acompanhou toda a ação da brigada militar. Quando as testemunhas começaram a se manifestar, ele subiu calmamente para sua casa, descendo minutos depois. Acontece que esse senhor era ninguém mais, ninguém menos, do que o homem que desferiu as facadas, ou seja, o assassino em potencial. A polícia havia prendido o homem errado.
Mas há um detalhe nessa história que faz toda a diferença para as ações da polícia: o suposto "bom velhinho" que estava passeando de short é um homem branco. Éverton, o motoboy, é negro.
A polícia do Rio Grande do Sul não titubeou um único segundo em prender o homem negro, o mesmo que minutos antes tinha sido esfaqueado. Isso mesmo: a polícia chegou e prendeu a vítima de uma tentativa de assassinato, se recusando a fazer o trabalho primordial de qualquer ação policial: observar as evidências.
Culpado até que prove o contrário
Mas o problema não parou por aí. Ele nunca para.
Mesmo depois que foi averiguado quem era a vítima e quem era o criminoso, Éverton foi detido e acusado de desacato e resistência à prisão. Isso mesmo, os policiais não só erraram, eles insistiram no erro. E essa insistência tinha uma salvaguarda que nunca falha: o racismo.
Afinal, no Brasil, todo negro é culpado, até que prove o contrário.
É assim desde que, literalmente, o Brasil virou Brasil, um país independente e soberano. Já escrevi em minha coluna como há uma relação umbilical entre a formação do Estado nacional brasileiro, a manutenção da ordem de uma sociedade que escolheu a escravidão e a forma como o braço armado da polícia tratava a população negra (escravizada e livre). Mas ainda que a escravidão tenha sido uma instituição que formou o Brasil em que vivemos hoje (criando inclusive uma síndrome generalizada de "senhorzinhos de escravos"), é fundamental que nossas instituições republicanas elaborem polícias públicas efetivas que transformem as próprias instituições republicanas, que já deram inúmeros exemplos de como são ordenadas pelo racismo.
Desculpas não são o suficiente. Nunca foram.
É preciso mudança, mudanças pra ontem e pra hoje.
É preciso reeducação também. E como as cinzas do Carnaval ainda estão em brasa, sugiro que autoridades civis e militares revejam os desfiles deste ano das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, sobretudo os da Portela e da Vai-Vai. Ali temos duas boas aulas de história e sociologia de como o racismo vem talhando nossa sociedade. E temos também as saídas possíveis que vêm sendo trilhadas por quem, há séculos, sobrevive ao inferno.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente da DW.