Mais de 600 mil brasileiros morreram na pandemia até agora. Apenas nos EUA o número de vítimas foi maior. Em seu relatório final apresentado na quarta-feira (20/10), a CPI da Pandemia acusa o presidente Jair Bolsonaro de dez crimes durante a execução das suas políticas sanitárias fracassadas. As acusações incluem charlatanismo, Infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e crimes contra a humanidade.
Graves acusações também foram apresentas contra 65 outras pessoas, incluindo três filhos do presidente, quatro ministros e duas empresas.
O presidente Bolsonaro reagiu da mesma maneira de sempre. "Nada produziram a não ser o ódio e o rancor", disse o presidente em um evento que aconteceu paralelamente à leitura do relatório. Mais uma vez, ele defendeu o uso de medicamentos antimaláricos e vermífugos comprovadamente ineficazes para combater a covid-19, usando o subterfúgio da defesa da autonomia dos médicos para administrar os remédios.
Um relatório final puramente político
O presidente sabe que juridicamente tem pouco a temer em relação ao relatório final de quase 1.200 páginas. Por um lado, o relatório ainda é um rascunho. Na próxima semana, o texto será votado pela CPI e poderá sofrer alterações. Depois disso, é certo que deve ser aprovado pela maioria dos 11 membros da comissão.
A exclusão de dois trechos controversos na noite de terça-feira mostrou que ainda há muita margem de manobra para novas alterações. As acusações contra Bolsonaro por homicídio e genocídio da população indígena foram deixadas de lado após pressão de senadores. Não havia base legal para essas imputações, argumentou-se, e foi levantado o risco de que essas acusações prejudicassem a credibilidade do relatório como um todo.
Mas mesmo que as principais acusações permaneçam na versão final e aprovada do relatório, isso em princípio não acarretará consequências jurídicas para o presidente. Em última instância, cabe ao Ministério Público verificar se existem de fato evidências ou mesmo provas sólidas sobre os crimes imputados. Os procuradores são livres para descartar acusações individuais ou adicionar novas. Não há vinculação obrigatória entre o relatório da CPI e as investigações do Ministério Público.
Bolsonaro conta com Augusto Aras
Além disso, Bolsonaro tem um grande trunfo na manga. Cabe ao procurador-geral da República, Augusto Aras, decidir se os pedidos de indiciamento contra o presidente devem avançar. Aras, nomeado por Bolsonaro em 2019, vem provando até o momento ser um protetor do presidente. O fato de que ele espera ser nomeado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal por Bolsonaro deve aumentar ainda mais sua lealdade pretoriana.
Não se espera que Aras indicie Bolsonaro. Em vez disso, é mais provável que Aras simplesmente ignore o relatório da comissão, deixando-o "mofar na gaveta". Há discussões se o STF poderia forçar Aras a aceitar dar andamentos às acusações, mas essa é uma questão controversa entre juristas.
Comissão de Inquérito como ferramenta de política
A oposição, que conta com maioria na CPI, está ciente de tudo isso, é claro. Então ela espera pelo menos desgastar Bolsonaro politicamente. Daqui a um ano, os brasileiros elegerão um novo presidente. A CPI reuniu muito material para a campanha eleitoral da oposição. As audiências que somam 370 horas acabaram sendo usadas para expor o fracasso da política governamental de combate à pandemia.
Não foi difícil. Foram explícitas a incompetência do governo em lidar com a pandemia e a clara indisposição de Bolsonaro em agir. O presidente não se importa com quantas pessoas morrem e não tem medo de dizer isso abertamente. É ainda mais surpreendente quantos brasileiros ainda são leais a Bolsonaro. Eles acreditam na narrativa do presidente de que se trata apenas de uma campanha de vingança da oposição.
As CPIs são, em sua maioria, espetáculos públicos
E elas têm boas razões para isso. As comissões parlamentares de inquérito são uma ferramenta política utilizada pela oposição para questionar o governo. Na história do Brasil, quase sempre foram usadas para pirotecnia política. Muito barulho por nada, um show puramente político-partidário sem consequências reais e investigações sérias. Nesse sentido, a CPI da Pandemia é um ponto de inflexão histórico, pois 9 terabytes - ou seja, 9.000 gigabytes - de documentos foram coletados e analisados por advogados especializados. Uma conquista histórica única.
A CPI merece crédito por revelar detalhes até então desconhecidos do fracasso do governo. A rede de corrupção que se formou em torno da compra de vacinas e remédios foi exposta, revelando a atuação ilegal de políticos pró-governo, funcionários e empresários. Esses peixes pequenos são provavelmente os que mais têm a temer o Judiciário. Eles provavelmente serão usados como bois de piranha.
E os peixes grandes? O mais provável é que ele estejam temerosos com a reação dos eleitores. Porque, uma vez sem mandatos, Bolsonaro e companhia poderão ser processados pelas instâncias inferiores da Justiça. É possível prever várias ações judiciais movidas por famílias de vítimas contra os responsáveis pela política para a pandemia. Em seguida, serão expostos novamente os responsáveis pela falta de oxigênio nos hospitais amazônicos e pelas centenas de pacientes que morreram nessas unidades.
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O alemão Thomas Milz trabalha há 15 anos no Brasil como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. O texto acima reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW
O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.