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Obra de Spix e Martius serve de alerta 200 anos depois

Marcio Damasceno
10 de agosto de 2019

Inspirados em Humboldt, Johann Spix e Carl Martius percorreram mais de 10 mil quilômetros de paisagens brasileiras. Legado de alemães é apelo à preservação ambiental e tema de mostra itinerante no Brasil e na Alemanha.

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Retratos em preto e branco de pesquisadores Spix e Martius
Spix e Martius: alemães criaram a base usada até hoje em pesquisas sobre fauna, flora e etnologia brasileiras

Inspirados pelas expedições de Alexander von Humboldt à América Latina realizadas nos primeiros anos do século 19, o zoólogo Johann Baptist Spix e o botânico Carl Friedrich Philipp Martius percorreram durante três anos mais de 10 mil quilômetros das paisagens brasileiras, começando no Rio de Janeiro, passando por São Paulo, Ouro Preto, Salvador, atravessando Minas Gerais, o sertão do Nordeste e explorando a bacia amazônica.

A aventura rendeu um testemunho único sobre o Brasil. Os naturalistas repartiram a vegetação brasileira em cinco biomas (cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e pampas), base usada até hoje – tendo havido de lá para cá o acréscimo de um sexto bioma: o Pantanal.

Ainda hoje, 200 anos depois, seu legado é base para estudos culturais, históricos e naturais. Ele também serve como alerta para a conservação do meio ambiente. Os aventureiros alemães testemunharam a atividade mineradora em Minas.

Painel de exposição mostra caminho percorrido por exploradores Spix e Martius
Composta de painéis desmontáveis, mostra itinerante percorre cidades brasileiras e alemãsFoto: DW/M. Damasceno

"Eles registraram a intensa exploração das minas e advertiram para o perigo da exploração excessiva do meio ambiente. Esse perigo foi confirmado por dois desastres ambientais: um em 2015, em Mariana, e o de 2019, em Brumadinho", ressalta o pesquisador alemão Willi Bolle, se referindo a duas catástrofes causadas pelo rompimento de barragens de mineração.

Bolle é um dos autores da exposição itinerante Viagem de Spix e Martius pelo Brasil, que celebra os diversos aspectos da longa caminhada dos exploradores alemães, além de traçar paralelos com o Brasil atual.

A exibição pode ser vista deste sábado (10/08) até o próximo dia 26 na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, seguindo depois para São Paulo e Curitiba. Paralelamente, uma réplica da mostra percorre cidades da Alemanha, onde, depois de uma temporada em Berlim, os painéis devem seguir para o sul do país, em cidades e datas a serem confirmadas.

Os 21 banners que compõem a mostra – realizada pelo Instituto Martius-Staden e o Colégio Visconde de Porto Seguro – unem o presente, com fotos atuais das paisagens, ao que foi testemunhado por Spix e Martius no século 19.  "A ideia foi fazer uma exposição de baixo custo, com painéis desmontáveis, que chega em mais lugares com menos investimento", explica a historiadora Karen Macknow Lisboa, curadora da exibição. Ela é ainda enriquecida com o acervo original dos lugares por onde passa, como em Berlim, no primeiro semestre deste ano. Ao ocupar a biblioteca do Instituto Ibero-Americano, os murais foram acompanhados por mostruários com originais das obras dos aventureiros alemães mantidos pela instituição.

Litografia mostra escravos em atividade mineradora em Minas Gerais, do livro "Viagem no Brasil", de Spix e Martius
Mineração em Minas Gerais, de "Viagem pelo Brasil", de Spix e Martius: alemães alertaram para perigo ao meio ambienteFoto: public domain

Jornada de desafios

No período da viagem, entre 1817 e 1820, os exploradores viveram muitos martírios, passaram por tempestades, secas, doença, sede. Spix e Martius retornaram à Europa levando uma vasta coleção de amostras e desenhos da fauna, flora e etnografia brasileiras.

Entre os suvenires transportados para a Europa, 6.500 plantas e sementes, 2.700 insetos, 85 mamíferos, 350 pássaros, 150 anfíbios e répteis, além de 116 peixes e 2.700 insetos, exemplares preparados e alguns mesmo vivos – incluindo seres humanos.

A dupla chegou na Alemanha com duas crianças indígenas, de duas tribos distintas, uma menina e um menino, que morreram meses após o desembarque na Europa. "Eles levaram seis índios da Amazônia, dois deixaram no Brasil, dois morreram durante a travessia do Atlântico", lembra a historiadora Karen Macknow Lisboa.

Índígena da etnia maxuruna, retratado em livro dos aventureiros alemães
Índígena da etnia maxuruna, retratado em livro dos aventureiros alemãesFoto: public domain

"Como eles adquiriram essas crianças é ainda um ponto de interrogação, mas tudo indica que elas foram escravizadas ilegalmente", frisa. ″Citamos isso nos painéis da mostra de maneira crítica. Mas também situamos dentro do contexto da época, quando esse tipo de prática não era incomum", ressalta. "O próprio Martius, em seu díário, quando mais velho, retoma o episódio e faz uma espécie de mea-culpa em relação a isso."

Parte da coleção etnológica brasileira dos exploradores ainda pode ser vista em museus de Munique. Artigos de caráter etnográfico, como máscaras indígenas, adereços, armas e outros utensílios se encontram no Museu dos Cinco Continentes, também na capital bávara.

O material foi usado como base para a produção de uma série de estudos sobre botânica e zoologia brasileiras, publicados nos anos seguintes. O relato da jornada em três volumes, Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil), está entre as primeiras dessas obras.

Martius foi responsável pelo lançamento da maior parte dos livros. Mesmo com saúde abalada nos anos seguintes, Spix finalizou alguns trabalhos importantes, contendo descrições de espécies de animais tropicais. Mas parte de sua contribuição foi impressa após ele ter morrido, em 1826, quase seis anos após deixar o Brasil, de doença adquirida nas matas tropicais.

Ariranha-azul
Ariranha-azul, descrita pela primeira vez por Johann Spix, ganhou nome científico que homenageia o pesquisador alemãoFoto: picture-alliance/dpa/P. Pleul

Exuberância brasileira

Em seus escritos, os autores descrevem e ilustram detalhadamente aspectos da exuberância natural do Brasil. Uma das contribuições de maior destaque de Martius é a monumental Flora Brasiliensis, ainda considerada a mais importante obra sobre a botânica brasileira, distribuída em 15 volumes subdivididos em 40 partes, originalmente publicados na forma de 140 fascículos individuais e lançados ao longo de seis décadas O trabalho descreve um total de 22.767 espécies.

Das mais de 3 mil espécies de animais catalogadas pela primeira vez pelos naturalistas alemães, algumas acabaram sendo batizadas em homenagem aos pesquisadores. Um exemplo é o nome científico da ararinha-azul, que homenageia Spix: Cyanopsitta spixii. Atualmente considerada extinta na natureza, a espécie (a mesma do personagem principal da animação da Disney Rio) só é encontrada em cativeiro.

Capa de exemplar original de "Reise in Brasilien" (Viagem ao Brasil) visto sob vitrine
Primeira edição de "Reise in Brasilien" exibida em Berlim: em alguns lugares, mostra é acompanhada por material originalFoto: DW/M. Damasceno

A missão de Spix e Martius foi realizada por ordem do rei da Baviera, Maximiliano José 1º, e tinha como meta principal a formação de um acervo científico para seu recém-fundado reino. A dupla de cientistas aproveitou uma carona na missão austríaca que acompanhava a comitiva da arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina. Ela embarcava rumo ao Brasil para se casar com Dom Pedro 1°. No retorno, os naturalistas foram homenageados pelo monarca bávaro com o título de cavaleiros, incluindo a denominação de nobreza "von" a seus sobrenomes.

Imagens históricas e recentes

Nos painéis da mostra Viagem de Spix e Martius pelo Brasil, as gravuras históricas que integram as obras dos naturalistas alemães são comparadas com fotos recentes feitas por Willi Bolle e pelo diretor do Instituto Martius-Staden, Eckhard Kupfer, em viagens que buscam retraçar os passos dos cientistas europeus. Eles já passaram por Minas Gerais, Bahia, produzindo o documentário em vídeo Travessia do sertão: no caminho de Spix e Martius.

"O objetivo da nossa viagem era conhecer esses lugares, ver o que continua existindo e registrar as transformações que ocorreram", destaca o pesquisador.

Radicado no Brasil desde 1966, o alemão Willi Bolle e tem se dedicado há anos a pesquisar a topografia cultural da metrópole São Paulo, passando pelo sertão, até a Amazônia. "Nesse sentido, o trajeto é praticamente o mesmo, e no meio do percurso descobri que os meus inspiradores foram Spix e Martius."

A mobilidade da exposição também permite que ela seja emprestada gratuitamente a escolas, para realização de ações pedagógicas. Mais informações podem ser obtidas com o Instituto Martius-Staden.

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