O ódio envenena tudo
3 de março de 2020"A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira." (Provérbios 15,1)
O atentado em Hanau há duas semanas, que causou a morte de dez pessoas de origem estrangeira, provocou forte comoção em dezenas de cidades na Alemanha e levou milhares de cidadãos às ruas em sinal de solidariedade aos familiares das vítimas. Também nos estádios de futebol, as torcidas organizadas se posicionaram claramente contra racismo, violência e extremismo de direita naquele fim de semana.
Em Mönchengladbach, contudo, o jogo entre Borussia M'Gladbach e Hoffenheim foi interrompido por conta de um banner levantado por torcedores conhecidos como Ultras. Nele estava estampado o rosto de Dietmar Hopp, mecenas do Hoffenheim, na mira de tiro ao alvo. Trata-se de uma odienta imagem ameaçadora de morte, objeto de amargas controvérsias e disputas jurídicas.
Os Ultras do Gladbach reagiam assim a uma determinação da Federação Alemã de Futebol promulgada dois dias antes, em 20 de fevereiro, que impôs uma penalização coletiva à torcida organizada do Borussia Dortmund, proibida de entrar na arena do Hoffenheim pelos próximos dois anos. O motivo alegado foi que torcedores aurinegros se fizeram notar por frequentes injúrias públicas a Dietmar Hopp, acompanhadas de discursos de ódio.
Detalhe: há dois anos a própria Federação havia anunciado publicamente que não aplicaria mais punições coletivas.
A Organização ProFans, que representa considerável grupo de torcidas organizadas, considera que os insultos e a mira de tiro ao alvo retratando Dietmar Hopp se tornaram um símbolo de luta contra a punição imposta pela Federação. O seu porta-voz, Sig Zelt, afirma que "se a Federação suprimir a punição coletiva, o caminho estará aberto para amainar os ânimos".
Além de evidenciar que a manifestação intempestiva dos Ultras foi uma ação coordenada entre as torcidas organizadas de Gladbach e Dortmund, é justo questionar porque Hopp, que não ocupa nenhum cargo na Federação, se tornou o seu alvo preferencial.
O bilionário fundador da empresa SAP representa para muitos torcedores a mercantilização extrema do futebol. Com centenas de milhões de euros, transformou uma pequena agremiação de um vilarejo num clube que desde 2008 disputa a primeira divisão do futebol alemão, além de ter financiado a construção de uma moderníssima Arena com capacidade para 30.000 espectadores.
Desde então, Hopp se tornou o inimigo nº 1 das torcidas organizadas na Alemanha. Elas o acusam de ter subvertido a regra 50+1, que proíbe os clubes de serem dirigidos por um investidor detentor da maioria absoluta das cotas – a não ser que comprove investimentos contínuos por pelo menos vinte anos. Hopp e seu Hoffenheim se enquadram nessa exceção e, atualmente, o bilionário detém 96% das cotas do clube.
Vale lembrar que Leverkusen (Bayer) e Wolfsburg (Volkswagen) também estão enquadrados nessa regra e, surpreendentemente, não há notícias sobre torcidas protestando contra diretores desses clubes.
Neste último fim de semana repetiram-se cenas como as que foram vistas em Gladbach, só que numa proporção bem maior. Dessa vez, a Bundesliga se viu confrontada com uma ação coordenada por diversos agrupamentos de torcidas organizadas em algumas arenas da Alemanha. Banners ofensivos e miras de tiro ao alvo, com o rosto de Hopp no centro, foram erguidos. Em Berlim, Hoffenheim, Dortmund e Colônia atos difamatórios e mensagens de ódio dos Ultras contra o bilionário estavam na ordem do dia.
O mais grave ocorreu durante o jogo entre Hoffenheim e Bayern. A partida foi interrompida em duas oportunidades. Quando finalmente os jogadores voltaram a campo, ficaram apenas tocando a bola um para o outro em sinal de protesto contra a manifestação da torcida bávara.
Foi aplicado o código disciplinar da FIFA que estipula um procedimento de três etapas em casos de discriminação durante um jogo. Inicialmente previsto apenas para coibir atos racistas, pelo jeito poderá também ser utilizado para outros atos de intolerância, como se viu em Hoffenheim.
De todo modo, fica agora a expectativa se os juízes vão agir com o mesmo rigor em situações explícitas de racismo, homofobia ou xenofobia contra quem quer que seja.
Na partida pela Copa da Alemanha (DFB-Pokal) entre Schalke e Hertha Berlim, por exemplo, o jogador Jordan Torunarigha, foi alvo de ofensas racistas. O jogo deveria ter sido interrompido. Não foi. O juiz alegou que não ouviu as ofensas racistas, apesar de ter sido avisado a respeito. O pior ainda estava por vir. Torunarigha, alguns minutos depois de ter sido ofendido, sofreu uma violenta falta, caindo estatelado no chão à beira do campo. Ao se levantar, indignado com justa razão, chutou uma caixa de plástico com garrafas de água. O árbitro Harm Osmers dessa vez não teve dúvidas e lhe mostrou o segundo cartão amarelo e consequentemente o vermelho.
Em outro jogo, desta vez do time juvenil do Hertha Berlim, os jovens jogadores da equipe berlinense foram alvo de pesados ataques de teor racista. Decidiram abandonar o campo, recusando-se determinantemente a continuar a partida naquelas condições. A Federação puniu o time com a perda dos pontos.
Recentemente, o atacante Timo Werner do Leipzig ouviu os piores impropérios sem que qualquer medida fosse tomada. Os xingamentos incessantes eram de torcedores Ultra do Hoffenheim que também não economizaram insultos de baixo calão e de teor misógino contra todo o time do Freiburg. Nos dois casos, nem o juiz e muito menos os jogadores foram capazes de um gesto de repúdio como se viu na partida entre Hoffenheim e Bayern.
Para o torcedor comum, fica a impressão de que, na hora da aplicação das regras, há dois pesos e duas medidas.
O futebol alemão, em todas suas instâncias, vai precisar encontrar uma estratégia claramente definida para enfrentar esta crise. A Federação precisa definir concretamente em quais casos e a partir de que momento o juiz está autorizado a implementar o procedimento FIFA das três etapas e os clubes, por sua vez, precisam reavaliar sua relação com as torcidas Ultras.
Ajudaria muito também se as torcidas Ultra renunciassem de vez aos banners difamatórios e ameaçadores. Elas precisam entender que ofensas e ameaças pessoais não são um instrumento legítimo de protesto. Com sua criatividade característica, os Ultras certamente encontrarão meios construtivos para exprimir civilizadamente o seu protesto.
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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Desde 2002, atua nos canais ESPN como especialista em futebol alemão. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit sai às terças. Siga-o no Twitter, Facebook e no site Bundesliga.com.br
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