O xadrez do inquérito que envolve Bolsonaro
28 de abril de 2020As consequências da abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal para investigar as acusações que o ex-ministro da Justiça Sergio Moro dirigiu ao presidente Jair Bolsonaro, autorizada na segunda-feira (27/04) pelo ministro Celso de Mello, dependerão do desenrolar das investigações e da evolução do quadro político, mas têm potencial para trazer complicações políticas ao presidente.
Moro, ministro mais popular do governo Bolsonaro, saiu do governo na sexta-feira (24/04) acusando o presidente de tentar usar a Polícia Federal (PF) para bloquear investigações contra seus familiares e aliados políticos. No mesmo dia, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF autorização para investigar possíveis crimes cometidos por Moro ou por Bolsonaro.
No inquérito, Bolsonaro será investigado se cometeu obstrução de Justiça e advocacia administrativa, caso realmente tenha usado a PF para bloquear investigações contra familiares e aliados, ou falsidade ideológica, ao colocar a assinatura de Moro na exoneração do então diretor da PF sem que o então ministro da Justiça tivesse de fato a assinado, entre outros crimes.
Já Moro pode ter de responder por crime de denunciação caluniosa se não tiver provas de que Bolsonaro realmente tenha tentado usar a PF para proteger aliados, ou prevaricação, se soubesse de eventuais crimes cometidos pelo presidente e não cumpriu sua obrigação como ministro da Justiça de denunciá-los. Como perdeu o foro privilegiado ao deixar o governo, ele responderia na primeira instância da Justiça Federal.
Um presidente denunciado por crime comum
O procurador-geral da República é, pela Constituição, a única pessoa que pode denunciar o presidente da República por cometer um crime comum. Se ele o fizer, a denúncia precisa ter o aval de dois terços da Câmara dos Deputados — pelo menos 342 deputados — antes de seguir para o Supremo.
Caso esse apoio mínimo na Câmara não seja alcançado, a denúncia é arquivada. Isso já ocorreu duas vezes durante o governo Michel Temer, quando o peemedebista foi denunciado pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot, por corrupção passiva e, depois, por integrar organização criminosa e obstrução de Justiça, no contexto da Operação Lava Jato e da delação do empresário Joesley Batista, um dos donos da holding J&F.
Se dois terços da Câmara aprovarem o prosseguimento da denúncia, cabe então ao plenário do STF abrir uma ação penal. Nesse caso, Bolsonaro se tornaria réu e seria afastado do mandato por 180 dias para que o processo seja julgado.
Nesse ponto, há uma diferença nos processos por crime comum cometido por um presidente em relação ao processo de impeachment, quando há crime de responsabilidade. No caso de crime comum, é o próprio STF que julga o presidente, enquanto no impeachment o órgão julgador é o Senado.
O xadrez de Aras
A figura-chave nesse caso é o procurador-geral da República. Nomeado para o cargo por Bolsonaro em setembro de 2019, Aras tem sofrido críticas por manter um alinhamento ao presidente e não agir de forma contrária ao governo em casos emblemáticos, como nas manifestações do presidente contra medidas sanitárias necessárias durante a pandemia, a respeito de comunidades indígenas ou sobre decretos que flexibilizaram o porte e compra de armas e munições.
Porém, no pedido de abertura de inquérito, Aras foi "ambíguo" e deixou uma abertura suficiente para, ao final, denunciar tanto Moro como Bolsonaro, a depender da evolução do caso, do surgimento de provas e do contexto político, afirma à DW Brasil Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP.
"Se [ao final do inquérito] estiver feio para Bolsonaro, Aras poderá dizer que fez a sua parte e ninguém o acusará de ter sido omisso. Se Bolsonaro se mantiver estável no poder e o inquérito se voltar contra Moro, ele poderá mostrar que foi 'um bom soldado' [do governo] e cava seu caminho para uma vaga no Supremo", afirma.
Juliano Zaiden Benvindo, professor de direito constitucional da Universidade de Brasília, afirma que Aras tomou uma decisão importante ao pedir a abertura do inquérito, mas que seus próximos passos são ainda uma "incógnita", em especial como ele fará uso do tempo nos próximos atos processuais. Como se trata de uma investigação envolvendo o presidente, haverá um jogo político que influenciará o desfecho do caso.
"As peças se movem de forma diferente quando o presidente é o acusado. Haverá um processo de desgaste progressivo, Bolsonaro será bombardeado toda semana na TV. A Polícia Federal, por mais que tenha um novo diretor, pode reagir agressivamente e promover investigações de forma mais célere, e isso se alimenta com a imprensa, vazamentos, etc.", diz Benvindo, ressalvando que também é possível que o inverso ocorra e que Bolsonaro se beneficie de um contexto mais favorável no futuro. É nesse cenário que, ao final da investigação, Aras tomará uma nova decisão: denunciar ou não o presidente.
A política e o direito
Caso Bolsonaro seja denunciado, o contexto político e o apoio ao governo determinarão como será o comportamento da Câmara, onde já há diversos pedidos de impeachment contra o presidente aguardando manifestação do presidente da Casa, Rodrigo Maia.
"O Congresso ganha tempo com esse inquérito, Maia não precisa autorizar a abertura de um processo de impeachment agora. Pode ser que o Supremo entregue para eles a denúncia, e aí só caberá ao Congresso decidir se dá prosseguimento ou não. É uma pressão diferente sobre o presidente da Câmara", diz Benvindo.
Maria Paula Dallari Bucci, professora de direito da USP, avalia que, hoje, é incerto que dois terços dos deputados aprovariam o prosseguimento de uma denúncia contra Bolsonaro.
"Pelos dados que temos hoje, só se vier uma prova muito contundente e houver um convencimento da Câmara", diz, lembrando que alguns partidos discutem a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) Mista no Congresso para também investigar as alegações de Moro, que poderia ter um papel complementar na formação de opinião dos deputados.
"Vejo uma proximidade com o processo do [ex-presidente Fernando] Collor. Houve a instalação de uma CPI e foram sendo divulgados informações e elementos que tornaram mais clara, na opinião pública, a falta de condições para o presidente seguir no mandato", afirma.
Se houver uma denúncia por parte do procurador-geral da República, a única chance de Bolsonaro se salvar dela seria bloquear o processo na Câmara, avalia Benvindo. No Supremo, ele aposta que haveria unanimidade contra o presidente. "O Supremo se dividiu em dois durante a Lava Jato, entre os garantistas e os salvacionistas. Mas Bolsonaro é tão explícito em suas loucuras do ponto de vista institucional que, no Supremo, essas duas partes se uniram contra ele", diz.
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