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O que é anarcocapitalismo?

20 de novembro de 2023

Eleição de Javier Milei na Argentina chamou a atenção para o anarcocapitalismo, uma corrente liberal radical que defende a eliminação total do Estado e a privatização de todas as relações econômicas.

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Fachada do Banco Central da Argentina
Durante a campanha eleitoral, uma das principais propostas de Javier Milei era eliminar o Banco Central argentinoFoto: Leo La Valle/dpa/picture alliance

O ultraliberal populista Javier Milei, vencedor da eleição presidencial da Argentina no domingo (19/11), ganhou projeção ao defender propostas radicais que incluem a dolarização total da economia, redução drástica do Estado, e extinção do Banco Central. Ideologicamente, Milei se define como "libertário" e "anarcocapitalista" e já defendeu no passado ideias extremas como a permissão para a venda de órgãos.

Anarcocapitalismo é uma filosofia política e teoria econômica que defende a total abolição do Estado em favor da propriedade privada e de acordos econômicos contratuais dentro de um sistema capitalista.

A ordem social seria caracterizada apenas pelo livre mercado, no qual os cidadãos teriam direito à autodeterminação e fechariam acordos voluntários, sem a existência de um Estado, mesmo que mínimo.

Para os anarcocapitalistas, ou "ancaps", serviços básicos, como segurança, educação e saúde, deveriam ser prestados por empresas privadas num mercado livre, e não pelo Estado, o que resultaria numa melhor qualidade desses serviços.

Durante a campanha presidencial em Córdoba, Javier Milei empunha uma nota gigantesca de 100 dólares estampada com seu rosto.
Dolarização da economia é uma das propostas dos chamados anarcocapitalistas. Durante a campanha presidencial em Córdoba, Javier Milei empunha uma nota gigantesca de 100 dólares estampada com seu rosto. Foto: Nicolas Aguilera/AP Photo/picture alliance

Os anarcocapitalistas acreditam que o Estado é um obstáculo ao desenvolvimento de uma sociedade realmente livre e que a existência de um Estado, como nas atuais sociedades capitalistas, leva a um sistema de coerção dos cidadãos.

Do ponto de vista do anarcocapitalismo, o Estado é a organização suprema da violência, já que tudo o que o Estado faz baseia-se, em última análise, no monopólio da violência (ou poder), que ele detém e que exerce por meio da coerção.

Assim, para essa filosofia, apenas o mercado livre numa sociedade sem Estado pode levar a uma sociedade verdadeiramente livre, na qual as pessoas podem celebrar acordos contratuais entre si – sem o controle ou supervisão do Estado.

Principais teóricos

O termo anarcocapitalismo foi usado pela primeira vez pelo economista americano Murray Rothbard (1926–1995). No centro da teoria de Rothbard estão a soberania do indivíduo e o princípio da não agressão. Rothbard enfatizou que o seu termo anarcocapitalismo não tinha nada em comum com o anarquismo.

Já o economista político belga Gustave de Molinari (1819-1912) é frequentemente considerado um dos primeiros anarcocapitalistas do mundo moderno. De Molinari foi uma das mais notáveis figuras anarquistas pré-rothbardianas a misturar o anarquismo com o pensamento capitalista.

Na sua obra Da produção de segurança, De Molinari defende a segurança privada e os direitos de propriedade e critica os monopólios estatais.

As ideias de De Molinari foram elogiadas pelo pensador austríaco Hans-Herrmann Hoppe (1949), um dos pensadores centrais do anarcocapitalismo na atualidade e representante da chamada Escola Austríaca. Entre as principais referências dele estão os economistas, também austríacos, Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich A. Hayek (1899-1992).

Outra figura de destaque na defesa do pensamento anarcocapitalista é o americano David Friedman (1945), filho do famoso economista Milton Friedman (1912-2006). Ele argumenta que os mercados são capazes de lidar sozinhos com questões jurídicas, de aplicação da lei e de segurança.

Críticas

"E quem vai construir as estradas?" é uma crítica em forma de pergunta que geralmente é feita aos anarcocapitalistas.

Outra crítica frequente é que, sem um Estado, corporações privadas acabariam por acumular um grande poder, que exerceriam sobre o resto da sociedade, o que poderia levar à tirania e à opressão.

Críticos argumentam que, sem um Estado público regulamentador, o anarcocapitalismo levaria, pela livre ação das forças do mercado, à formação de um cartel entre as empresas que surgiriam para prestar os serviços no lugar do Estado, o que resultaria numa espécie de Estado de facto, privado e sem os limites constitucionais do Estado público.

O intelectual americano Noam Chomsky, um notório crítico do capitalismo, afirmou que "o anarcocapitalismo, na minha opinião, é um sistema doutrinário que, se fosse implementado, levaria a formas de tirania e opressão com poucos paralelos na história humana. Não há a menor possibilidade de que as suas ideias (na minha opinião, horríveis) sejam implementadas porque elas destruiriam rapidamente qualquer sociedade que cometesse este erro colossal. A ideia de 'contrato livre' entre o potentado e seu súdito faminto é uma piada de mau gosto".

Outros críticos afirmam que o capitalismo não teria como se manter sem um Estado que garantisse um sistema jurídico imparcial. O resultado seria a existência de diversas jurisdições e mesmo diferentes sistemas jurídicos, com disputas legais demasiado complexas e dispendiosas.

Modelo histórico

Os anarcocapitalistas costumam apontar para uma época na história da Islândia (de 930 a 1264 d.C.) como sendo uma sociedade com algumas características de uma sociedade anarcocapitalista.

"Quase se poderia descrever o anarcocapitalismo como o sistema jurídico islandês aplicado a uma sociedade muito maior e mais complicada", afirmou David Friedman, que apresentou o exemplo no livro As engrenagens da liberdade, de 1973.

Javier Milei durante discurso
Javier Milei, que se apresenta como anarcocapitalista, foi eleito presidente da ArgentinaFoto: picture alliance;IMAGO

Na descrição mitológica dessa sociedade, o governo da Islândia medieval não tinha Executivo, lei criminal ou burocracia, e o seu sistema de chefias baseava-se nos mercados.

As figuras centrais desse sistema eram chefes chamados godar (no singular godi). A característica central das chefias era a natureza baseada no mercado. O conjunto de direitos que constituía ser um chefe, chamado godoro, era propriedade privada. Quem quisesse ser um chefe poderia encontrar alguém que estivesse disposto a vender seu godoro e comprá-lo dele. A lealdade a um chefe era puramente voluntária, e os seguidores contratavam livremente serviços com o godi. Mudar de lealdade para um outro godi era possível, segundo Friedmann.

Críticos apontam para o que afirmam ser uma contradição nas próprias palavras de Friedman quando ele escreve que "uma segunda objeção é que os ricos (ou poderosos) poderiam cometer crimes impunemente, uma vez que ninguém seria capaz de impor sentenças contra eles. Onde o poder está suficientemente concentrado isto pode ser verdade; este foi um dos problemas que levou ao eventual colapso do sistema jurídico islandês no século 13".

Ou seja, segundo os críticos, o próprio Friedman admite que a concentração de poder resulta no colapso do sistema por ele idealizado e que, portanto, os anarcocapitalistas precisam explicar como o balanço de poder seria mantido na sociedade sem Estado por eles defendida.

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