O que os dentes podem revelar
26 de fevereiro de 2019Para qualquer dentista, basta um olhar boca adentro para saber se o paciente escovou bem os dentes. E quanto pior o estado deles, tanto pior é também, em média, o status social do paciente.
Dentes são também uma espécie de impressão digital: um médico forense pode usar a impressão da arcada dentária (por exemplo numa goma de mascar) para a identificação de criminosos.
E agora pesquisadores afirmam serem capazes de prever, por meio dos dentes de uma criança, se ela tem elevado risco de um dia desenvolver uma doença mental. Em pessoas idosas, por outro lado, os dentes podem dizer se elas foram expostas a metais pesados e se existe um alto risco de Alzheimer.
"Menosprezamos um biomarcador em potencial que literalmente cai da boca das pessoas ou é arrancado e vai parar no lixo?", indaga a epidemiologista de distúrbios psiquiátricos Erin Dunn, do Hospital Geral de Massachusetts, nos EUA. Segundo ela, deve-se dar muito mais atenção aos dentes, especialmente aos dentes de leite.
Numa reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), na semana passada em Washington, pesquisadores apresentaram o que os dentes podem revelar sobre futuras enfermidades. A principal descoberta: por meio da arcada dentária pode-se ver se uma criança sofreu muito estresse durante os primeiros anos de vida.
Nesse caso, as camadas individuais que compõem o dente, como o esmalte, são mais finas e menos densas, explica o psicólogo de saúde Thomas Boyce, da Universidade da Califórnia. "Isso torna o dente mais suscetível à cárie dentária." Essas alterações podem ser medidas ao se examinar um dente de leite decíduo num tomógrafo computadorizado.
Estresse não significa necessariamente dificuldades na escola, mas pode também ser resultado de problemas para lidar com a separação dos pais, com o barulho constante ou até mesmo abuso físico e/ou mental. Pessoas estressadas produzem muito cortisol, hormônio envolvido na resposta ao estresse e cuja concentração pode ser medida no sangue e na saliva, aponta Boyce.
"Em vez de um quadro momentâneo, o que realmente queremos saber é a quantidade total de cortisol a que alguém foi exposto." E é isso que os dentes revelam. Tudo indica que o hormônio do estresse influencia o desenvolvimento dentário.
De 2003 a 2005, o estudo Peers and Wellness (Amigos e Bem-Estar) analisou crianças em 350 famílias na área da baía de San Francisco. Os pesquisadores mediram tamanho, superfície, volume, cor e espessura das camadas dos dentes decíduos dessas crianças.
Eles encontraram evidências de que, em crianças com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e problemas de comportamento social, a camada de esmalte é mais fina e a polpa interna dentária é menor do que nas demais crianças.
"Até o momento, temos usado como biomarcadores na psiquiatria a saliva, o sangue e o microbioma intestinal em amostras de fezes", disse Erin Dunn. "Os dentes foram pouco estudados." Mas eles podem dar pistas importantes sobre as condições sob as quais uma criança passou seus primeiros anos de vida.
Muitas doenças mentais não têm causa genética, mas derivam das vivências de uma pessoa – especialmente em seus primeiros anos de vida, diz Dunn. Isso inclui o estresse. Assim, por que não examinar um dente de leite decíduo de uma criança?
Os dentes se formam gradualmente. Os dentes de leite e os permanentes já surgem no período embrionário, mas só se desenvolvem após o nascimento e em ritmos diferentes, dependendo da posição e da função. Os dentes de leite incisivos se formam primeiro, enquanto os dentes de leite molares não se desenvolvem totalmente até os 3 anos de idade. Os últimos dentes permanentes aparecem na adolescência.
"Os dentes registram as situações de estresse que ocorreram durante o seu desenvolvimento", explica Dunn. As camadas de esmalte se formam de maneira circular, semelhante aos anéis de crescimento de uma árvore. "Os dentes nos revelam não apenas se um evento de estresse ocorreu, mas também quando." Nesse aspecto, eles revelam mais que uma amostra de sangue ou saliva.
Se houve contato com metais pesados, como o chumbo, durante a formação dentária, eles ficarão armazenados na camada de esmalte. Isso foi demonstrado em ratos por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em 2005. Nos humanos provavelmente acontece o mesmo.
As pessoas que estiveram expostas a altos níveis de chumbo antes ou logo após o seu nascimento correm maior risco de desenvolver esquizofrenia, demonstraram pesquisadores americanos em 2017. Os cientistas constataram a carga de chumbo por meio dos dentes de leite decíduos guardados pelas pessoas testadas.
O neurobiólogo Marc Weisskopf, da Universidade de Harvard, supõe que altas concentrações de chumbo também podem elevar o risco de Alzheimer. Sua tese sugere que os metais pesados favorecem a formação de placas amiloides no cérebro, que são típicas da doença. Atualmente, ele está investigando essa hipótese em mais de 400 indivíduos numa clínica para ex-soldados.
Quando se arranca um dente de um deles, os pesquisadores recolhem a valiosa amostra. Se um paciente morre, toda a dentição fica a serviço da ciência – se houver o consentimento do paciente, é claro.
A pesquisa dentária como uma ferramenta preditiva para doenças futuras ainda está engatinhando. Existem apenas alguns estudos e muito ainda é desconhecido. Mas uma coisa os pesquisadores já deixaram claro: dentes de leite são preciosos demais para desaparecerem como suvenir no armário.
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