O pão que o diabo amassou
2 de julho de 2004Quase 30 anos após sua publicação no Brasil, a editora Suhrkamp trouxe recentemente aos leitores alemães Lavoura Arcaica, livro-escândalo de Raduan Nassar publicado no Brasil em 1975. O pequeno volume, hermético e recheado de acrobacias lingüísticas, traz à tona a temática do incesto no seio de uma patriarcal família rural brasileira, camuflada pelo acentuado lirismo de Nassar.
A tradução ficou a cargo de Berthold Zilly, professor de Língua e Literatura Brasileira na Universidade Livre de Berlim. Zilly, que já se aventurou na tradução de clássicos de Euclides da Cunha e Lima Barreto, diz, rindo, que não se considera "um tradutor profissional, mas apenas um tradutor bissexto. Mas espero que a qualidade do meu trabalho seja profissional".
A DW-WORLD aproveitou a oportunidade da publicação para falar com ele.
DW-WORLD: Lavoura Arcaica é o terceiro romance brasileiro que o senhor traduziu para o alemão. Tal qual Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, trata-se de um texto de difícil tradução. Como o senhor escolhe os livros que traduz?
Berthold Zilly: Os dois primeiros, eu realmente escolhi. A sugestão para trazer esses dois clássicos da cultura brasileira — eu diria até da cultura latino-americana e universal — para as letras alemãs, foi minha. E eu levei muitos anos para encontrar editoras para esses dois romances. No caso de Euclides da Cunha, pode-se discutir se é um romance, um ensaio histórico, geográfico, sociológico.
Mas, de qualquer forma, eu levei muitos anos para encontrar editoras, porque é muito difícil editar livros estrangeiros de autores não vivos. Em geral, quando se trata da literatura de países, digamos, culturalmente não hegemônicos — quer dizer, fora do eixo Europa-Estados Unidos —, é muito difícil convencer um editor a aceitar a publicação.
E no caso de Lavoura Arcaica?
Nesse caso, a escolha não foi minha, foi da editora. Embora muitos amigos brasileiros já tenham me alertado da necessidade de este livro ser traduzido para o alemão. Eu me lembro que estive há alguns anos em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo. Lá se realiza anualmente a Semana Euclidiana, porque foi naquela cidadezinha que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões, enquanto trabalhava como engenheiro construindo uma ponte.
Durante esse encontro, uma amiga me deu o livro e disse "Olha, você tem que traduzir Lavoura Arcaica". Quer dizer, quem traduziu Os Sertões deve ser capaz de traduzir Lavoura Arcaica [risos]. Isso foi em 1999 ou 2000. Aí eu li o livro, pra dizer a verdade um pouco superficialmente, mas gostei, gostei muito. Achei difícil, de certa maneira ainda mais difícil que Os Sertões.
Günter Grass disse que os tradutores o desafiam a reler sua própria obra de uma forma tão intensa, como nenhum crítico o faria.
Günter Grass tem razão. Eu acho que qualquer tradutor lhe daria razão. Muitos críticos literários e teóricos da literatura não estão se dando conta dessa verdade, que no fundo é óbvia. Porque o tradutor tem que pensar todos os pensamentos, sentir todos os sentimentos, imaginar todas as imaginações, até viver todas estas experiências que entraram no livro.
Mais ainda: ele tem que saber mais do que o autor. Tem que entender o livro mais do que o autor. Principalmente quando se trata de um livro histórico, pois o tradutor tem que conhecer a história que se passou desde a data de publicação até hoje. Ele tem que conhecer a recepção do livro no país de origem e em outros países. Tudo isso vai entrar na tradução.
Tomar Raduan Nassar ao pé da letra é, na minha opinião, impossível. O senhor chegou a consultá-lo?
Houve um contato muito bom. Ele é considerado muitas vezes uma pessoa reservada ou até, digamos, não muito acolhedora. Mas comigo não houve nada disso. Ele foi muito gentil, muito acolhedor. Bastante eloqüente também. Agora: ele não pôde ou não quis responder a todas as perguntas. O que eu também entendo, porque ele parou de escrever já faz mais de 20 anos. Quer dizer, ele nem se considera mais escritor ou homem de letras. Ele se considera, e de fato é, agricultor.
Qual é hoje a situação da literatura brasileira no mercado literário alemão em relação tanto à tradução quanto ao consumo?
Eu, na verdade, não conheço o mercado literário tão bem. Talvez haja pessoas mais indicadas para responder tal pergunta. Mas acho que, nos últimos anos, a atenção do público leitor nos países de língua alemã se voltou mais para outras culturas, como o Leste Europeu. O grande boom da literatura latino-americana que tivemos na Alemanha nos anos 60, 70 e até 80, caracterizado por nomes como Astúrias, García Marquez, Vargas Llosa, Cortázar e Borges, claro, o primeiro grande autor latino-americano de projeção universal, é hoje coisa do passado.
No caso do Brasil, Guimarães Rosa e Clarice Lispector tiveram um impacto muito grande na Alemanha e em toda a Europa. Mas esse tempo passou. Recentemente foi outorgado pela Universidade Livre de Berlim [Freie Universität Berlin] o título de doutor honoris causa a Carlos Fuentes. Entretanto, ele é injustamente considerado por muitos críticos como um homem do passado. Além do mais, existe a impressão de que as maiores obras da literatura latino-americana já eram.
O senhor é professor de Língua e Literatura brasileiras na Universidade Livre de Berlim. Como o senhor caracterizaria a pesquisa científica sobre a literatura latino-americana, em geral, e brasileira, especificamente, nas universidades alemãs?
Houve uma espécie de unilateralidade na recepção da literatura latino-americana e brasileira, apesar de todos os esforços de alguns críticos e professores. O que persistiu foi uma linha "exotista", quer dizer, o tipicamente latino-americano seria o pré-moderno, o maravilhoso, o mágico, o místico, o rural, eventualmente o protesto social, a denúncia da criminalidade, da corrupção. Uma postura, digamos, conservadora, mística: uma crítica da modernidade, das grandes cidades, das democracias modernas, da sociedade de massa, a partir de um ponto de vista neoconservador, elitista, arcaizante, místico. Ou a literatura de protesto social, o interesse pela guerrilha, por Che [Guevara].
Os velhos estereótipos...
Na verdade, os velhos estereótipos. De um modo geral, essa é a imagem da literatura latino-americana. Existem, claro, produções mais diferenciadas e muito boas. Mas, como a recepção dessa literatura fora do círculo dos conhecedores, professores e estudantes não teve continuidade, tais imagens ainda persistem, e as pessoas não querem mais saber disso e vão ler outras coisas.
Mas isso pode mudar. Há uma produção científica muito boa e muitos livros traduzidos da literatura brasileira. Você pode dizer que quase todos os grandes autores estão traduzidos. Às vezes, demora, como é o caso de Euclides da Cunha [risos]. E, às vezes, a tiragem se esgota em poucos anos e a reedição demora, como é o caso de Graciliano Ramos.
Como o senhor vê o futuro dessa pesquisa na Alemanha diante dos cortes que as graduações em Estudos Latino-Americanos vêm sofrendo em universidades praticamente de todo o país?
No momento, a situação ainda não é tão negra assim. Mas as perspectivas são sérias e preocupantes, isso é verdade. Na Alemanha, temos um grande problema, que é também uma chance: trata-se da descentralização política da área acadêmica e de pesquisa. Aqui não há universidades federais, nem uma política universitária centralizada. Ou apenas de uma maneira muito genérica.
Há 16 estados na Alemanha, e cada um deles tem Secretarias que gerem suas universidades. Eles fazem cortes nas áreas onde as pessoas gritam menos ou têm menos prestígio perante a opinião pública. Primeiro você corta nas Letras e, então, nas chamadas línguas menores. E o Brasil, absurdamente, tem essa posição.
Embora o português seja uma das línguas mais faladas no mundo. ..
Muito mais do que o alemão ou o francês. É um absurdo. E essa política de cortes funciona, então, de uma maneira totalmente desorganizada. Cada um corta por si. Se houvesse uma coordenação por alguma instância federal...
Quer dizer, vamos cortar língua e literatura portuguesa em tal e tal universidade, mas vamos manter em cada região universidades nas quais o português e o estudo das culturas lusófonas estejam presentes, de forma a criar áreas de concentração. Mas isso, pelo menos por enquanto, não está acontecendo. Então temos o grande perigo de cada um cortar por si e veremos só depois o que sobrou.
Grandes escritores brasileiros faleceram recentemente: Jorge Amado e Raquel de Queiroz, na prosa, Haroldo de Campos, na poesia. Os renomados críticos literários brasileiros, como Antônio Cândido e Alfredo Bosi, estão em idade avançada. Como o senhor vê a geração que os substituirá?
Eu acho que a literatura brasileira, de um modo geral, tem um nível médio muito alto. O que caracteriza o valor de uma literatura não são apenas os grandes nomes. Em cada cidade brasileira, Fortaleza, Florianópolis, Porto Alegre, há excelentes autores. Talvez não candidatos ao Prêmio Nobel, mas, em geral, de um nível muito bom.
Em que pé está a atual produção literária brasileira? Pode-se dizer que esteja surgindo uma nova escola?
Eu não vejo, no momento, nenhuma escola. Talvez seja preciso para isso uma certa distância histórica. O que tematicamente sobressai é a linha de Rubem Fonseca, uma literatura urbana, que enfoca cada vez mais o avesso da medalha da sociedade de consumo, a brutalidade das relações sociais, a crescente guetização das grandes cidades, a alienação das classes, dos indivíduos.
Uma literatura preocupada também com a degradação ambiental. Mas esse movimento começou nos anos 70, você pode acompanhá-lo em toda a obra de Rubem Fonseca, Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu. E essa linha é continuada por Patrícia Melo, Fernando Bonassi, Paulo Lins.
O senhor diria que os jovens escritores de hoje escrevem mais individualmente?
Eu acho que sim. Mas os assuntos não me parecem totalmente novos. A fragmentação da realidade, a maneira como essa fragmentação é representada na ficção é que está aumentando. Em Patrícia Melo, por exemplo, você não vê mais o contorno de uma grande cidade, você vê apenas fragmentos dela.
O senhor já tem planos para novas traduções?
Há muito tempo eu tenho o plano de escrever um livro sobre Euclides da Cunha. As traduções, na verdade, interrompem esse trabalho [risos]. Mas eu tenho uma idéia antiga de traduzir o Facundo, de Sarmiento, que seria a contrapartida para Os Sertões na literatura argentina. Na verdade, uma espécie de modelo para Os Sertões, pois foi escrito bem antes. Mas isso é coisa para daqui a um ou dois anos. Primeiro eu quero terminar o livro sobre Euclides.