O duro cotidiano dos operários da Copa do Catar
8 de setembro de 2018Numa tarde de verão, trabalhadores esculpem um diamante no deserto. Pelo menos é o que o Education City Stadium é projetado para ser. Espera-se que ele tenha capacidade para 40 mil torcedores de futebol e que fique pronto em 2019, três anos antes da Copa do Mundo no país.
No fim de julho deste ano, a reportagem da DW viu mais de uma dúzia de operários trabalhando entre as 11h30 e 15h, período que o Estado do Catar determina como de descanso entre 15 de junho e 31 de agosto, época mais quente do ano.
Enquanto especialistas argumentam que não deve haver trabalho algum durante o dia nos severos verões locais – quando as temperaturas podem chegar a até 50 graus Celsius –, o próprio Catar proibiu o trabalho durante essas três horas e meia, aceitando que elas são impróprias para o trabalho. E, no entanto, a reportagem da DW testemunhou uma clara violação da lei, mesmo durante esta pequena janela de descanso para os trabalhadores.
Centenas já morreram em canteiros de obra, inclusive em projetos destinados à Copa do Mundo do Catar. Em 2012, 520 trabalhadores morreram no país, e mais de 300 dessas mortes continuam sem explicação.
O Catar afirma que os trabalhadores morreram por motivos não relacionados às condições de trabalho, como ataques cardíacos ou problemas respiratórios. Mas entidades de direitos humanos afirmam que esses são eufemismos para mortes relacionadas ao calor e reclamam que o Catar não fornece relatórios de autópsia, com o objetivo de esconder as reais causas das mortes.
Violações flagrantes
Nicholas McGeehan, especialista em direitos de trabalhadores migrantes no Golfo e que pesquisou as mortes de trabalhadores para a ONG Human Rights Watch, se espantou com as descobertas da DW.
Ele vê a violação, por ser num estádio ligado à Fifa, como ainda mais séria, porque os projetos da Fifa são de responsabilidade do Comitê Supremo de Entrega e Legado, estabelecido pelo governo do Catar, e que promete altos padrões de bem-estar para seus trabalhadores.
"Este anúncio sugere que os empreiteiros não estão nem cumprindo as leis mais básicas", disse McGeehan à DW.
Ativistas tentaram chamar atenção para esses problemas junto aos organizadores da Copa do Mundo. Apesar desses esforços, as falhas continuam, e ativistas como McGeehan questionam se o Catar leva a sério sua suposta mudança de atitude em relação à força de trabalho.
"A construção é um negócio conspícuo – é visível e barulhento, então é difícil de acreditar que eles acharam que poderiam escapar da detecção. A explicação mais plausível é que eles sentiram que escapariam de sanções. E se esse é o caso, ele põe em questão não somente a capacidade do Comitê Supremo de proteger os trabalhadores, como também seu compromisso com esse esforço", avalia McGeehan.
A DW mostrou as evidências em vídeo ao Supremo Comitê. O órgão admitiu que durante essas horas o trabalho é, de fato, proibido e prometeu uma investigação.
"Estamos preocupados em ver a evidência que o senhor apresentou de trabalho, que parece infringir as diretivas de horário de trabalho de verão do Catar”, afirmou a entidade em nota, afirmando que, caso as acusações forem confirmadas pelas investigações, "serão tomadas medidas corretivas e punitivas no caso de qualquer violação de nossos padrões ou da lei ".
O Ministério do Desenvolvimento Administrativo, Trabalho e Assuntos Sociais (ADSLA) respondeu ao questionamento da DW, dizendo que "mais de 400 inspetores de trabalho formam uma importante parte da nossa estratégia para assegurar que o Catar protege seus trabalhadores estrangeiros e continua a ser um líder na região no que diz respeito à reforma trabalhista".
Durante a visita da equipe da DW, os repórteres não receberam informações sobre a infraestrutura relacionada à Copa do Mundo devido ao "curto prazo" de nosso pedido, segundo representantes governamentais.
Mudanças cosméticas
Os trabalhadores estrangeiros no Catar moram em dormitórios como os do campo de alojamentos de Barawa, a 45 minutos de carro do Education City Stadium.
As gravuras de minúsculos minaretes nas paredes quase brancas são os únicos elementos que acrescentam um pouco de cor à aparência monótona dos alojamentos, que ficam escondidos dos habitantes locais.
Coberto de poeira, o local abriga uma mesquita, alguns restaurantes para atender ao apetite dos sul-asiáticos e lojas que vendem chips para celulares. As autoridades fornecem ônibus com ar condicionado para transportar os trabalhadores e digitalizaram o sistema de pagamento.
Os trabalhadores do campo reconhecem as mudanças e dizem que estão recebendo em dia seus salários mensais, mas estão descontentes com a quantia, equivalente a 200 dólares. E o padrão de vida baixo que levam torna ainda mais duro sobreviver ao calor e à umidade do Catar.
Sentados em um pequeno gramado coberto de bitucas de cigarro e copos de café vazios, os indianos Mohammed Akram e Wasim Khan [nomes alterados] contam que não sabem nada sobre quaisquer reformas. Ambos trabalham como eletricistas no metrô da empresa Qatar Rail.
Akram, que trabalhe no Catar há dez anos, diz que não viu a mudança prometida pelas autoridades do Catar, a não ser transferência dele e de seus colegas de contâineres modulares para acomodações de concreto.
"Nós somos sete em um só quarto. Até mesmo a comida que recebemos está fora do prazo de validade", afirmou, parecendo confuso quando a reportagem da DW o questionou sobre o seu passaporte. "O empregado confiscou no momento em que chegamos. Estou ouvindo de você pela primeira vez que posso manter meu passaporte."
O Catar prometeu reformar e abolir o chamado sistema Kafala, que monitora os trabalhadores. Os críticos dizem que ele restringe a liberdade de movimento deles e os coloca à mercê de seus empregadores. Uma parte importante das reformas, prometidas há dois anos pelo governo, deveria garantir que os documentos de viagem permanecessem com os trabalhadores. No campo de Barawa, a maioria diz que seus passaportes permanecem confiscados.
"Vida de cão é melhor"
Khan, colega de quarto de Akram, já está cogitando fazer as malas e voltar para a Índia. Ele chegou ao Catar há seis meses e diz que a vida no campo é insuportável.
"No meu vilarejo, até um cachorro leva uma vida melhor", diz. "Fico encharcado de suor durante todo o dia, é tão quente que minha cabeça gira", frisa. "E à noite ainda tenho que dividir meu quarto com outros seis. Por quê? Eu posso ganhar metade do que ganho trabalhando no meu país. Mas pelo menos eu vivo, não morro."
Depois de conversar com eles, a DW enviou um e-mail à Qatar Rail para perguntar por que os passaportes ainda estavam sendo confiscados e por que sete pessoas são forçadas a dividir um quarto. A DW também perguntou quantas vezes os fiscais trabalhistas inspecionaram os alojamentos dos trabalhadores.
Em resposta, um porta-voz da Qatar Rail afirmou: "Fizemos uma revisão interna para determinar se há alguma violação da lei. Se isso for verdade, tomaremos as devidas providências."
O ADSLA disse à DW que introduziu uma série de mudanças, incluindo melhor habitação, maiores salários e melhoria dos serviços de saúde. E Houtan Homayunpour, chefe do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Doha, disse à DW que "a mudança está chegando".
Apesar das promessas, os trabalhadores continuam morrendo. Dias depois da visita de DW, um operário nepalês de 23 anos morreu no estádio Al Wakrah, no Catar. De acordo com um dos principais empreiteiros, o homem caiu quando trabalhava sobre andaimes.
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