O coronavírus mudará nossa relação com os animais?
23 de novembro de 2020Quando a Dinamarca anunciou planos de exterminar todos os seus visons criados em cativeiro em resposta ao aparecimento de uma cepa mutante do coronavírus que poderia prejudicar a eficácia de qualquer futura vacina, veículos da mídia – inclusive os respeitáveis – foram rápidos em levantar temores de uma "nova pandemia".
Por mais exagerados que tais receios possam parecer, eles refletem uma maior percepção e uma crescente compreensão do risco representado por zoonoses – patógenos como Sars-Cov-2 (o vírus causador da covid-19) que são transmitidos de animais para humanos, ou passados de um para o outro de forma alternada.
"A questão não é 'se', e sim 'quando' será a próxima pandemia", disse Delia Randolph, autoridade internacional no tema, quando questionada sobre o que as zoonoses significam para a humanidade. "Desde que começamos os registros, temos visto uma nova doença humana emergir a cada quatro meses, muitas vindas de animais [...], e isso tem sofrido uma aceleração."
Mais precisamente: três em cada quatro dessas "novas doenças" vêm de animais, e a frequência com que surgiram vem se acelerando há mais de 40 anos.
Randolph foi a principal autora de um relatório conjunto do Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Unep) publicado em julho, examinando as razões para tal aceleração. Pesquisas de dezenas de cientistas em todo o mundo chegaram a uma conclusão: o comportamento humano, ou seja, a forma como interagimos e consumimos animais, é o principal fator de aumento da prevalência de doenças zoonóticas.
O relatório lista sete "fatores mediados pelo homem" por trás do problema, com os três primeiros sendo os seguintes: 1) aumento da demanda humana por proteína animal, 2) intensificação agrícola insustentável e 3) aumento do uso e exploração da vida selvagem.
Em outras palavras, poderíamos dizer que nosso desejo por carne e outros produtos de origem animal provavelmente será responsável pela próxima pandemia. Mas de que tipo de animais estamos falando?
Medidas de higiene garantem a segurança
Quando questionados, os principais especialistas em doenças infecciosas da Alemanha recomendam cautela com tais generalizações a respeito da produção de carne e do aumento de novos eventos epidêmicos. Deve-se ter muito claro, por exemplo, que tipo de produção de carne está implícita – e que tipo de patógenos levam a tais eventos.
"Não acho que se possa culpar a pecuária industrial pelas doenças zoonóticas", disse Paul Becher, diretor do Instituto de Virologia da Universidade de Medicina Veterinária de Hannover. "Os padrões de higiene são simplesmente muito altos no setor agrícola industrial. E animais como porcos, bovinos, caprinos ou ovinos geralmente não são receptivos a esses tipos de patógenos exóticos. É uma questão complexa, mas novas doenças zoonóticas geralmente se originam de animais selvagens. "
Apesar do imenso número de animais necessários para a produção industrial intensiva de carne, e do fato de que eles são mantidos em estreita proximidade, os epidemiologistas veterinários parecem concordar que esses animais não são responsáveis pelo surgimento e disseminação de novas doenças.
"A pecuária industrial é um terreno fértil perfeito para a transmissão de agentes infecciosos", admite Marcus Doherr, chefe do Instituto de Epidemiologia Veterinária da Universidade Livre de Berlim (FU Berlin). "Se uma infecção acontecesse num sistema fechado como esse, nada conseguiria impedir que ela contaminasse todos os animais. No entanto, as práticas de higiene observadas nesses locais tornam isso muito raro".
O Instituto Nacional Friedrich Loeffler de Saúde Animal da Alemanha aponta que, no passado, várias doenças zoonóticas foram introduzidas por meio de criação industrial, entre elas: tuberculose bovina, brucelose, gripe aviária, campilobacteriose e salmonela. No entanto, o órgão ressalta que "a humanidade rapidamente se esquece disso, pois tais infecções são facilmente evitadas seguindo medidas de higiene."
Perda de biodiversidade é mais um fator
Os riscos apresentados pela carne de caça e a criação de quintal, métodos comuns de produção de carne em países em desenvolvimento, incluindo regiões de floresta tropical úmida na África e na Ásia, são maiores não apenas por causa da falta de medidas de higiene. Deve-se também levar em consideração o meio altamente favorável a esses microorganismos onde essas práticas ocorrem.
"Se existe uma grande biodiversidade entre o que se vê, há uma biodiversidade ainda maior entre o que não se vê", aponta Fabian Leendertz, epidemiologista de microrganismos altamente patogênicos do Instituto Robert Koch da Alemanha.
É "incrível quantos vírus, bactérias e parasitas existem na natureza e como tão poucos deles chegaram aos humanos", disse Leendertz à DW, acrescentando, no entanto, que à medida que os seres humanos invadem cada vez mais os habitats animais e erradicam a biodiversidade, os patógenos têm cada vez mais chances de migrar e criar assim novas doenças zoonóticas.
"Quando se destrói a diversidade das espécies, chega o momento em que surgem mudanças na composição de mamíferos, e essas mudanças podem resultar em certas espécies se tornando muito abundantes. Se acontece de elas carregarem um patógeno altamente infeccioso, a probabilidade de um salto para os humanos é muito maior."
Superpopulação: a raiz do problema?
A invasão de habitats naturais pelos humanos e a consequente perda de biodiversidade é um subproduto de nossa crescente população global.
O aumento das fazendas de quintal e do comércio de carne de caça também se deve ao crescimento populacional, já que a carne é frequentemente a única fonte confiável de sustento em partes do mundo em desenvolvimento.
Dos epidemiologistas veterinários e virologistas consultados pela DW, todos enfatizaram que o crescimento populacional, juntamente com nossa maior mobilidade como espécie, é tão problemático quanto nosso desejo por carne quando se trata do aumento de doenças zoonóticas.
"Os patógenos sempre existiram", disse Fabian Leendertz. "O que mudou, e o que acho realmente preocupante, é a grande conectividade do mundo globalizado em que vivemos atualmente. O risco de um patógeno pequeno e exótico chegar à próxima capital de onde pode facilmente se espalhar pelo mundo agora é maior do que nunca."
"Não estou dizendo que teremos uma covid-19 a cada ano", disse Marcus Doherr, que já foi abordado por seguradoras que queriam saber se o próximo grande surto pode ser previsto. "O que estou dizendo é que a possibilidade de isso acontecer novamente definitivamente existe. Dado o nosso tamanho populacional atual e a interação com a vida selvagem, que é muito intensa em algumas regiões do mundo, será impossível prevenir a transmissão de patógenos entre animais e humanos. Mas a questão de se eles vão se espalhar entre os humanos num nível pandêmico é motivada por nada menos que nossas viagens, a nossa mobilidade global."