O conflito esquecido da Europa
7 de agosto de 2018Enquanto Ilya Bervashvili caminha para seus campos de milho, o círculo azul no mapa o acompanha para além da linha pontilhada. Mas não se pode confiar num aplicativo quando se trata desta fronteira. É tudo mais complicado aqui do que o que aparece no Google Maps.
O agricultor aponta para a placa verde apenas a alguns metros de suas terras. Ela diz "fronteira nacional", marcando o limite entre o território controlado pela Geórgia e a região separatista da Ossétia do Sul, reconhecida como Estado por apenas cinco países no mundo – incluindo a Rússia, que a apoia e defende.
A Geórgia vê a fronteira como uma "linha de ocupação". Em muitos locais, a linha divisória não é nem visível – e diz-se que ela é deslocada. Aqui, no vilarejo de Ditsi, há uma pequena área de "fronteira verde" (território entre dois pontos oficiais de controle nacionais), rodeada por uma cerca. Dos dois lados, não há nada.
"Eles estão atrás das minhas terras", diz Ilya, referindo-se aos guardas de fronteira russos que ele diz patrulharem ao longo de seus campos, logo atrás da placa. "Eu trabalho até o limite da minha terra. Eles não me incomodam e eu não os incomodo. Mas eles estão por trás da minha terra, patrulhando", descreve, ajustando seu chapéu de lona. "Se eles dizem 'olá' e falam comigo, eu respondo", acrescenta.
Ilya costumava trabalhar para a polícia da Geórgia – mas já é agricultor há 15 anos. Além de milho, ele cultiva peras, nozes, uvas e framboesas. Galinhas rodeiam o pátio de sua casa de pedra. A terra pertence à família há gerações.
A linha limítrofe e flexível com a Ossétia do Sul já engoliu parte da propriedade de Ilya, mas é o desgaste psicológico da guerra que ele considera mais difícil de esquecer.
No início de agosto de 2008, enquanto o mundo olhava para Pequim, que recebia os Jogos Olímpicos, tensões entre a Rússia e a Geórgia escalaram para uma guerra total envolvendo as regiões separatistas georgianas da Abcásia e da Ossétia do Sul. Quando a Geórgia quis voltar a controlar Tskhinvali, capital da Ossétia do Sul, a Rússia respondeu com tanques e ataques aéreos, assegurando que estava defendendo cidadãos russos na área.
"Eu estava em casa. Observei de lá. Não foi fácil ver aquilo porque eles estavam bombardeando tudo em volta da gente", explica Ilya, dizendo que seis morteiros caíram em um de seus campos. "E ainda dá para ver onde o estilhaço de um deles atingiu aquele poste ali", relembra, apontando para uma coluna de eletricidade da qual faltam vários pedaços.
A mãe de Ilya, Venera Edisherashvili, está abaixada varrendo a varanda da frente da casa. Em seguida, senta num banquinho de madeira para descansar. A mulher de 84 anos diz que um de seus três filhos foi morto durante a guerra. "À noite, às vezes não consigo dormir porque tenho medo pelo meu filho, tenho medo de que eles venham. Tenho medo", repete.
O que assombra Ilya, por sua vez, é o risco potencial da linha fronteiriça com a Ossétia do Sul. "A tensão pode ser sentida a todo momento. Se você atravessar a fronteira, eles podem te capturar, te colocar na prisão. Se nossos animais passarem, eles confiscam. Eles andam por aqui e indicam o lugar das coisas, eles andam com cachorros, com armas – é claro que isso nos coloca num estado psicológico determinado", descreve.
Por outro lado, observadores veem as tensões oriundas do conflito como relativamente estáveis. Erik Hoeg, chefe da Missão de Observação da União Europeia na Geórgia, define que a real fronteira está "endurecendo" em vários lugares, com a construção de mais cercas – um processo que, em alguns casos, dividiu terras de cidadãos, separou famílias e restringiu a liberdade de movimento.
Hoeg avalia a situação como "relativamente estável" no sentido de não haver tiroteios na Linha Administrativa de Fronteira (ABL, na sigla em inglês), termo que a UE usa para descrever a fronteira entre o território controlado pela Geórgia e as regiões separatistas.
"Mas somente o fato de haver um grande número de pessoal armado, relativamente próximos uns dos outros ao longo da ABL, é algo que temos que observar de perto, especialmente onde não há consenso sobre onde a ABL transcorre – são áreas com muita incerteza. Por isso, estamos no terreno com observadores 24 horas por dia, sete dias por semana", explica.
A missão da UE tem patrulhas na região desde 2008 e também opera uma linha de emergência para que pessoas dos dois lados do conflito possam ligar quando há incidentes. Por exemplo, houve mais de 150 prisões próximo à linha divisória em 2017, segundo observadores da UE.
Lado Bitshashvili, do escritório da ONG Human Rights Watch sediado na cidade georgiana de Gori, concorda que todos os lados do conflito precisam continuar caminhando cautelosamente, mesmo dez anos depois da guerra. "Um único incidente pode fornecer o impulso de voltar a transformar esse conflito congelado num foco de enfrentamento. É muito importante para todos os lados garantir que os incidentes que acontecem não se tornem algo maior", alerta.
Em Ditsi, Ilya e sua mãe, Venera, certamente estão dispostos a defender suas terras. "Meu filho e eu somos guardas de fronteira sem remuneração", ri Venera. Ela diz que mantém o número da UE preparado no caso de a fronteira ser deslocada.
Ilya tem a mesma determinação. "Esse é o meu pedaço de Geórgia, minha parcela do meu país natal", diz. "Não vou ceder nem um passo, nenhuma gota para ninguém. Enquanto eu estiver vivo, as botas de soldados russos não vão tocar o solo aqui", adverte.
Apesar de permanecerem muitas das incertezas trazidas pela guerra, há um silencioso sentimento de que há avanços em Ditsi. O conflito havia resultado no corte do abastecimento de água da cidade – o recurso vinha da Ossétia do Sul. Mas há três anos as autoridades redirecionaram a água para Ditsi a partir de um rio próximo. E, há apenas um mês, novos canos de metal foram instalados, levando a água diretamente para as fazendas.
Um estreito curso d'água também passa pelas terras de Ilya. "Em breve, as framboesas estarão maduras", alegra-se.
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