O ameaçado legado do governo Obama
12 de janeiro de 2017Barack Obama foi empossado presidente dos Estados Unidos em 2009. Apesar de isso ter sido há apenas oito anos, pode parecer para muitos que se fala de um passado distante, como se desde então o mundo tivesse passado por uma total reviravolta.
Um olhar sobre o ponto de partida da administração Obama não é necessário apenas para fazer um balanço: ele também revela que o cenário global encarado por Obama no começo do seu primeiro mandato, ainda que muito diferente em vários aspectos, não era menos assustador do que o a ser enfrentado pelo seu sucessor, Donald Trump, quando este assumir o cargo, na próxima semana.
"Ele [Obama] assumiu provavelmente no momento mais difícil para um governante desde Franklin Roosevelt", comenta o professor de estudos americanos Iwan Morgan, da Universidade College de Londres (UCL). "Os Estados Unidos enfrentavam a pior recessão desde a Grande Depressão e combatiam em duas guerras no exterior. Foi uma herança muito difícil."
Para piorar as coisas, Obama ainda teve que lidar com um país onde a polarização política não parava de aumentar, obrigando-o a trabalhar com um Partido Republicano de objetivos bem simples: obstruí-lo ou tirá-lo do cargo.
Política econômica
Obama conseguiu impedir que os Estados Unidos deslizassem para outra Grande Depressão após a crise financeira de 2008. Essa é uma de suas conquistas, e ela muitas vezes é subestimada, afirma o especialista Desmond King, da Universidade de Oxford. Em resposta às implicações imediatas da crise financeira, Obama conseguiu não apenas passar no Congresso o maior pacote de estímulo financeiro da história dos Estados Unidos como também aprovar a regulação financeira Dodd-Frank, que tem como objetivo evitar um desastre similar no futuro.
Ainda que uma boa parte do legado de Obama corra o risco de ser revertida por Trump, "o que Obama de fato fez e vai ficar é ter mantido o país longe de desastres", aponta o professor de relações internacionais David Sylvan, do Instituto Superior de Estudos Internacionais, em Genebra. Um desses desastres foi o colapso da economia, afirma o especialista, e um grande feito de Obama foi ter orquestrado a recuperação dos EUA da crise econômica de 2007-2008.
Política doméstica
A Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente, também conhecida com Obamacare, é a realização principal da política doméstica de Obama. Para King, esse é um legado que marcará o presidente. "Ele conseguiu saúde universal para todos os americanos. Isso é algo que três dos seus quatro antecessores tentaram, mas acabaram falhando", destaca.
A Lei de Proteção e Cuidado estendeu a proteção por meio de seguro de saúde a milhões de americanos que antes não tinham acesso a ela. "É o programa de concessão de direitos mais significativo desde os anos 1960", afirma Morgan.
No entanto, é provável que o programa seja a primeira vítima do governo Trump e do Congresso dominado por republicanos: ambos prometeram revogar e substituir o mais importante projeto de política doméstica de Obama – ao qual se opuseram desde o início.
"Eu diria que, na política interna, a grande falha da presidência de Obama – e, estruturalmente, acho que era praticamente impossível reverter isso em dois mandatos – foi a crescente desigualdade econômica", considera Morgan. Embora Obama tenha reconhecido o problema, diz, ele não conseguiu resolvê-lo, o que acabou contribuindo para a ascensão de Trump.
Política externa
O acordo nuclear com o Irã é citado por todos os especialistas como uma realização-chave de Obama, mas também é considerado muito vulnerável e com alto risco de ser desfigurado pelo governo Trump.
Segundo Sylvan, é por isso que a recusa de Obama de intervir militarmente na Síria permanece como uma de suas duas realizações duradouras – uma que nem mesmo a administração Trump deverá ousar desfazer, já que "poucas pessoas ainda têm disposição para intervir na Síria".
"Não ter ido à guerra" é o principal legado externo de Obama, na opinião de Sylvan. "Por os Estados Unidos estarem em guerra há tanto tempo e estarem sendo instigados a ir mais uma vez, ter resistido é um feito imenso."
"Eu sei que muitas pessoas encaram isso como um fracasso", acrescenta King. Mas ele argumenta que, pela primeira vez em muito tempo, Obama foi capaz de interromper o ciclo de jovens militares americanos morrendo no exterior.
O pilar filosófico que sustentou a política externa de Obama foi o reconhecimento dos limites do poder americano, assim como o deslocamento das prioridades americanas da Europa e do Oriente Médio para a Ásia, aponta Morgan, que faz uma avaliação pessimista do histórico de Obama.
"Em relação ao primeiro aspecto, Trump certamente vai tomar um rumo diferente do de Obama, e, em relação ao segundo, Obama simplesmente não obteve realizações substanciais com esse giro para a Ásia", disse. "Eu diria que quando olharmos para a política externa de Obama, vamos ver que ela não colocou fundações muito profundas em termos de legado."
Especificamente em relação à Síria, a recusa de Obama de fazer mais permitiu que a Rússia ocupasse esse espaço, com o resultado de Moscou ter conseguido se restabelecer como a figura central na região pela primeira vez desde a década de 1970.
Relações raciais
Independentemente do que Trump e seus colegas republicanos fizerem com seu legado político, Obama já conseguiu assegurar um lugar na história como o primeiro presidente negro dos EUA. Esse fato é importante de ser reiterado, observa King, e jamais teria acontecido sem as mudanças provocadas pelo movimento dos direitos civis na década de 1960.
As relações raciais nos EUA, entretanto, não melhoraram, e até mesmo pioraram durante o mandato de Obama, afirmam os especialistas. Isso porque a eleição do primeiro presidente negro do país desencadeou uma reação política com matizes raciais.
"Poucos meses depois da posse de Obama, um poderoso movimento branco, um movimento nacionalista, começou a agir contra ele: o Tea Party", diz King. "Ao mesmo tempo, havia o movimento "birther" [movimento que questionava a nacionalidade de Obama], que desafiava a sua legitimidade para ser presidente. Havia essa cultura branca antinegra e um movimento contra Obama desde o primeiro dia de sua presidência."
Tudo isso, afirma Morgan, teve um profundo impacto na eleição presidencial de 2016. "Na minha opinião, o tipo de inferioridade cultural sentida por muitos brancos americanos por causa da presença de um homem negro na Casa Branca agravou os problemas de Hillary Clinton. A possibilidade de o primeiro presidente negro ser seguido pela primeira presidente do sexo feminino era demais para muitos americanos, que decidiram votar em Trump em 2016."