"Não há obstáculo para punir crimes da ditadura"
30 de janeiro de 2023Até pouco tempo, a palavra "anistia" remontava, no Brasil, ao período da ditadura militar (1964-1985). A Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, entre 1975 e 1979, é reconhecida como o primeiro movimento nacional unificado contra o regime.
Recentemente, o termo voltou ao centro do debate público pela bandeira "sem anistia", que reivindica a punição de supostos crimes cometidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, bem como de seus apoiadores que participaram dos atos antidemocráticos em Brasília, em 8 de janeiro.
A rejeição à anistia é movida pelo receio de que o passado de impunidade se repita. Ao final da ditadura militar, o governo de exceção concedeu indulto aos presos políticos, mas estendeu a anistia a torturadores e demais agentes do Estado responsáveis por violações de direitos. A Lei de Anistia, assinada em 1979, é considerada até hoje a principal barreira para responsabilizar juridicamente os autores dos crimes.
O Brasil acumula duas condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar os crimes da ditadura. A primeira, de 2010, condenou o Brasil pelos crimes perpetrados pelo Estado durante a Guerrilha do Araguaia. Em 2018, uma nova sentença foi expedida, referente ao caso do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto na sede do DOI-Codi em 1975.
Em ambos os casos, a Corte sinalizou expressamente que a Lei de Anistia foi um dos mecanismos que impediram a investigação, o julgamento e a punição dos responsáveis pelas violações. A questão da aplicação da lei foi submetida ao Supremo Tribunal Federal (STF) que, em abril de 2010, decidiu contra a revogação da anistia para agentes públicos acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar.
Em abril de 2021, foi lançado o movimento "Reinterpreta já", com o objetivo de pressionar a Suprema Corte brasileira a rever sua decisão sobre a Lei de Anistia. No entanto, há quem entenda ser possível investigar os crimes do passado mesmo com a interpretação vigente. É o caso da nova presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
"O STF afirmou que a Lei de Anistia está em vigor e é uma lei de memória. Como tal, ela teve o alcance de apagar condenações", explica. "Agora, no caso de quem torturou outra pessoa, não teve processo nem denúncia, muito menos condenação e punição, essa pessoa não foi alcançada pela Lei de 1979”".
Almeida recorre à experiência de países com regimes totalitários no passado recente, onde antigos carcereiros são condenados mesmo que em idade muito avançada.
"São crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado. A gente não pode deixar passar essas atrocidades como se nada tivesse acontecido, porque isso volta como recalque. Aí, é violência na certa", afirma. "E a responsabilização tem que se dar no campo administrativo, no campo civil e no campo penal. Não há nenhum obstáculo para isso acontecer."
Ela assume a Comissão de Anistia com o objetivo de retomar sua determinação constitucional. Criada em 2002, o órgão visa a reparar integralmente vítimas do arbítrio do Estado durante a ditadura e contribuir no fortalecimento da memória. No governo Bolsonaro, o órgão foi aparelhado por militares e ficou inerte.
Em entrevista à DW, a nova presidente da Comissão avalia o momento atual como uma "janela de oportunidades" para discutir com a sociedade a importância de revisitar o passado.
"Quando uma pessoa é declarada anistiada política brasileira, o pedido de desculpas é dirigido a esse indivíduo, mas, na verdade, é dirigido a toda a sociedade brasileira. É uma espécie de garantia da não-repetição, o nosso ‘nunca mais'".
DW Brasil: Como é assumir a Comissão de Anistia neste momento, quando o debate se tornou tão atual?
Eneá Almeida: É uma janela de oportunidades. Em outros momentos, as pessoas se perguntavam, sobre a atuação da Comissão: "será que precisa mesmo? Para que remexer coisas do passado?". Agora, eu não tenho que me esforçar em nada para dizer qual é a importância de termos esse cumprimento constitucional. É a nossa democracia que está em jogo, e justamente porque a gente passou muitos anos com um certo receio de enfrentar os traumas do passado. Com o medo de algum setor ficar ressentido, a gente achou melhor deixar para lá. Esse "deixar para lá" é a pior coisa que a gente pode fazer. Em qualquer situação de conflito, você pode fazer qualquer coisa, menos fazer de conta que o conflito não existe. Isso gera recalque, e recalque gera violência.
O resultado concreto a gente viu no dia 8 de janeiro. Por que aconteceu esta e outras tantas situações de extrema violência? Porque a gente não cumpriu a lei, a gente não ouviu o recado do Ulysses Guimarães, no dia 5 de outubro de 1988, quando ele promulgou a nossa Constituição. Com o livro sobre a cabeça, ele falou: "Temos uma nova Constituição, porque nós temos ódio e nojo da ditadura. Ditadura nunca mais!". A Constituição foi feita porque a gente passou por uma ditadura, exatamente para que a gente não tenha mais uma ditadura.
Como a Comissão de Anistia pode contribuir nesse sentido?
A tarefa da Comissão de Anistia, como todas as comissões de Estado, é justamente dar conta de um mandamento constitucional, que não foi colocado lá por alguma posição vingativa ou revanchista. Não, esse mandamento foi colocado lá pelo constituinte brasileiro, que está longe de representar um grupo de esquerdistas ou coisa parecida. O objetivo era que nós atingíssemos, finalmente, a reconciliação nacional, a pacificação do Brasil. O que a gente está pedindo hoje? Estamos cansados desse discurso de ódio, desse conflito, com famílias se dividindo e amigos rompendo relações. Essa radicalização se dá justamente porque a gente não atingiu esse ponto de reconciliação.
E isso não é feito por decreto. Temos que fazer o dever de casa. Outros tantos países passaram pela mesma coisa. Todo conflito que a gente enfrenta tem uma parte dolorosa. Mas é necessário que, com respeito, maturidade e muita verdade, a gente enfrente os arbítrios da perseguição política implementada pelo Estado. O Estado tem que tomar a iniciativa de dizer: população, vamos conversar sobre esse assunto. É um assunto difícil, mas temos que enfrentar. A gente não pode empurrar essa sujeira para baixo do tapete, porque uma hora vai voltar à tona. Quando isso acontece, é um recalque, que sempre vem com violência. Não é bom para ninguém e a gente não vai atingir a pacificação. E a Comissão de Anistia se insere nesse quadro.
Existe um movimento para que o STF reinterprete a Lei de Anistia, para que agentes do Estado responsáveis por crimes e violações possam ser punidos. Como você avalia essa possibilidade?
A partir da experiência do fascismo, do nazismo e outros regimes totalitários, formou-se um consenso no direito internacional de que crimes cometidos pelo Estado são de lesa-humanidade. E crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Não se trata de uma conduta individual isolada. Foi o Estado que perseguiu cidadãos. Portanto, cabe a responsabilização. É por isso que, vez ou outra, em Israel ou na Europa, pessoas com mais de 100 anos são condenadas por terem sido carcereiros em um campo de concentração, ou coisa parecida. Podemos pensar: nossa, mas isso já aconteceu há tanto tempo, pode ser feito esse julgamento? É fundamental fazer.
No Brasil, também. São crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado. A gente não pode deixar passar essas atrocidades como se nada tivesse acontecido, porque isso volta como recalque. Aí, é violência na certa. Já temos algumas dezenas de denúncias, outras tantas investigações do MPF, tudo obviamente dentro do Estado de direito, do devido processo legal. Houve provas? É caso de condenação? Então, condena e encontra a punição mais adequada. Não necessariamente significa pena de reclusão. Aí sim, tem uma série de condições individuais, que precisam ser levadas em conta para averiguar isso em qualquer caso, obviamente. E a responsabilização tem que se dar no campo administrativo, no campo civil e no campo penal. Não há nenhum obstáculo para isso acontecer.
O STF afirmou que a Lei de Anistia está em vigor e é uma lei de memória. Como tal, ela teve o alcance de apagar condenações. Logo, todas as pessoas que foram condenadas ou sofreram algum tipo de sanção foram alcançadas pela Comissão de Anistia, como alguém que foi demitido do emprego por ser considerado subversivo. Agora, no caso de quem torturou outra pessoa, não teve processo nem denúncia, muito menos condenação e punição, essa pessoa não foi alcançada pela Lei de 1979. Enquanto uma lei de memória, ela não apagou os fatos. Do meu ponto de vista, não é necessário haver reinterpretação e nem revisão da lei. A gente só precisa aplicar a jurisprudência do próprio Supremo e do direito internacional – consequentemente, a jurisprudência da Corte Interamericana. Pronto, estamos resolvidos, vamos responsabilizar quem tiver provas.
O que esperar da sua gestão à frente da Comissão de Anistia, após um período de inércia com militares no comando?
A principal coisa que eu espero que aconteça é que a Comissão de Anistia volte a ser uma comissão de Estado. Esta já era a minha expectativa antes mesmo da minha nomeação. A tarefa principal da Comissão de Anistia é cumprir uma ordem constitucional, por isso ela é uma comissão de Estado; ela não tem nada a ver com qual é o governo de plantão. Para que isso aconteça, o que a gente tem que fazer é uma coisa razoavelmente simples: a gente tem que cumprir a lei, coisa que não aconteceu nos últimos quatro anos.
Então, as primeiras providências administrativas serão voltadas à normatização da comissão. Em 2019, já sob o guarda-chuva do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com a então ministra Damares Alves, foi feito um novo regimento interno da Comissão de Anistia. Esse texto é totalmente ilegal e inconstitucional, uma vez que apequena a Comissão de Anistia e a transforma em uma comissão de governo. Essa descaracterização é inconstitucional, porque ela tem que ser uma comissão de Estado, justamente para cumprir esse mandamento da Constituição. O primeiro passo nessa direção será reunir os conselheiros para modificar o regimento interno e arrumar a casa.
Outra providência muito importante que a comissão precisa voltar a cumprir é o pedido de desculpas às vítimas de violência do Estado. Isso foi interrompido ainda no governo Temer, e é muito grave. Quando uma pessoa é declarada anistiada política brasileira, o pedido de desculpas é dirigido a esse indivíduo, mas, na verdade, é dirigido a toda a sociedade brasileira. É uma espécie de garantia da não-repetição, o nosso "nunca mais". É o Estado brasileiro que está ali, perante aquelas pessoas, para dizer: nunca mais o Estado brasileiro vai perseguir cidadãos, nunca mais o Estado brasileiro vai querer eliminar pessoas, nunca mais o Estado brasileiro vai sair fora da Constituição e do ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário, o Estado brasileiro vai se subordinar ao império da lei. Este é o grande recado da Comissão de Anistia.