Entrevista
8 de dezembro de 2008Um dos especialistas na obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa, o austríaco Stefan Kutzenberger é pouco conhecido no Brasil. Autor do livro Europa no Grande Sertão: Veredas. Grande Sertão: Veredas na Europa – obra sem tradução para o português, lançada pela editora holandesa Rodopi em 2005 – Kutzenberger possui também publicações a respeito dos escritores Robert Musil, Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, entre outros.
Em entrevista à DW-WORLD.DE, o professor austríaco conta como aprendeu português através do contato com a literatura de Guimarães Rosa, traça paralelos entre a obra do autor brasileiro e a filosofia de Sören Kierkegaard e critica a tradução dos livros de Guimarães Rosa para o alemão. Leia abaixo a íntegra da entrevista com Stefan Kutzenberger:
DW-WORLD.DE: O que o levou a se interessar por Guimarães Rosa?
Stefan Kutzenberger: Pesquisei bastante sobre a literatura moderna hispano-americana: Julio Cortázar, Guillermo Cabrera Infante, Gabriel García Márquez, etc. Percebi como é absurdo o pouco contato entre os autores da América Latina hispânica e os brasileiros, dificultando para um pesquisador da literatura de um dos idiomas a transposição dessa barreira. Por isso resolvi dar esse passo e fui buscar os grandes romances modernos brasileiros. Acabei por me deparar logo de início com Grande Sertão: Veredas.
Comecei a aprender português por causa de Guimarães Rosa. Foi uma situação parecida com a de Jorge Luis Borges, que aprendeu alemão para ler [Immanuel] Kant, mas abandanou decepcionado o estudo da língua, já que não compreendia Kant. Só anos mais tarde é que ele percebeu que há também alemães que não compreendem Kant.
Eu também desisti irritado do estudo do português, mas logo percebi com satisfação que conseguia ler Machado de Assis ou a poesia de Manuel Bandeira. Busquei então o auxílo da tradução alemã, inglesa, espanhola e até holandesa, e fui gradativamente me aproximando de Grande Sertão: Veredas, até o dia em que pude ler o romance em português. Sou provavelmente um dos poucos que aprendeu português para ler João Guimarães Rosa!
Sua tese trata especificamente da relação da filosofia de Kierkegaard com a obra Grande Sertão:Veredas. Como surgiu a idéia de criar um paralelo entre dois autores?
Não sou um especialista em Filologia Românica, mas sim em Literatura Comparada, uma área na qual olhamos automaticamente para além das fronteiras. Para mim é fascinante observar como idéias, temas, motivos e tendências literárias se expandem. E como indivíduos podem criar toda uma tradição literária, enquanto outros conseguem disseminar essa tradição em outras culturas completamente diferentes. Também me impressiona o quanto há em comum entre os países e seus idiomas. Na verdade, há mais semelhanças que diferenças.
Desde o começo, considerei Grande Sertão: Veredas um romance cristão. Guimarães Rosa mesmo dizia que o aspecto religioso era para ele o mais importante. Como leitor, eu queria simplesmente saber: o que vai acontecer no fim desse longo monólogo de 500 páginas? Riobaldo vai encontrar sua paz? Será que ele vai ter que viver a vida que lhe resta com medo de ter vendido sua alma? Essas são perguntas importantes e que não podem ser ignoradas.
No entanto, alguns estudiosos do romance as ignoram. Eles acreditam que o romance poderia continuar infinitamente. O escritor só teria parado em algum momento porque o livro deveria inevitavelmente acabar. De alguma forma, percebi que um autor tão consciencioso e reflexivo como Guimarães Rosa não iria simplesmente parar em algum lugar somente para acabar o livro.
No momento em que o romance termina, também está definido o destino de Riobaldo, apesar do sinal de infinito que sucede o ponto final depois da última palavra "travessia". Riobaldo experimenta, portanto, na última palavra, ainda uma derradeira passagem. Que travessia é essa que termina no infinito?
Me lembrei do conceito-chave do filósofo dinamarquês Kierkegaard. De acordo com ele, através de um mergulho no absurdo, se pode terminar no estágio religioso e lá encontrar a salvação. Não seria bom, se isso tivesse sido alcançado por Riobaldo, depois de tantas dúvidas atrozes? Resolvi então ir ao fundo desta questão. A partir do texto, analisei a situação da narrativa, o monólogo como confissão, as diferentes travessias, o amor infeliz por Diadorim, etc.
E, de alguma forma, minha primeira impressão parecia se confirmar: Riobaldo passava exatamente pelos estágios que Kierkegaard desenvolveu na sua filosofia. É interessante notar como essas primeiras intuições costumam se confirmar depois de uma análise científica. De acordo com minha leitura pessoal do romance, está claro que Riobaldo acha a paz, e que depois do árduo monólogo, ele se encontra no estágio religioso do filósofo dinamarquês.
Poderia fazer um paralelo entre a recepção Grande Sertão: Veredas na época do lançamento da tradução para o alemão e a situação atual de recepção do autor?
Me impressionou muito que eu só tenha sabido tão tarde da existência de Guimarães Rosa, depois de tanto tempo trabalhando com a literatura hispano-americana e com a sua recepção na Europa. Achei que alguma coisa havia dado errado, para que eu, uma pessoa interessada em literatura, só tenha descoberto o grande autor brasileiro através de caminhos paralelos.
Eu quis entender este fenômeno e descobri que o romance foi um sucesso e que teve grande repercussão na mídia, depois de sua publicação na Alemanha em 1964. No entanto, esse grande interesse se dissipou e já a segunda edição não vendeu tão bem. Hoje, o romance em alemão não se encontra mais à venda, o que é uma vergonha.
Acredito que essa recepção fraca se deva à expectativa do público alemão e também à propaganda feita pela editora na época do lançamento. O livro foi anunciado como exótico. Prometeu-se um livro "tropical" no seu sentido mais amplo, isto é, que pudesse satisfazer o desejo dos europeus por culturas distantes e estranhas.
O que se prometeu poderia provavelmente ter sido cumprido pelo romance Cem Anos de Solidão, de García Márquez, publicado três anos depois, mas não por Grande Sertão: Veredas. A linguagem da obra era complexa demais e sua filosofia muito densa e multifacetada. O livro não é uma leitura de férias na praia, mas sim um monumento altamente complexo da literatura mundial, que não faz concessão aos leitores.
Outro problema é certamente que a tradução alemã fez exatamente isso: ela é repleta de concessões. Praticamente quase nada permanece da radical renovação da linguagem do original. Tenho todo o respeito pelo trabalho de Curt Meyer-Clason e pela sua imensa contribuição para a literatura latino-americana. A tradução alemã, porém, não contém a mesma força que emana do original.
Percebe-se que você fez uma pesquisa intensa, cruzando dados e buscando fontes originais. Quais as dificuldades que teve e aspectos novos que encontrou nessa pesquisa?
Eu precisava fazer um balanço geral sobre o assunto antes de escrever o livro. A princípio, meu objetivo principal não era escrever um livro, mas sim responder à seguinte questão: Riobaldo econtra, afinal, absolvição e paz? Além disso, eu queria saber por que não era possível achar na Áustria este grande romance numa livraria e com uma tradução adequada.
Depois de uma longa pesquisa e de não ter encontrado a resposta para essas perguntas, resolvi sair eu mesmo atrás das respostas. O resultado foi o livro que escrevi. Para mim, respondi de alguma forma essas perguntas, mas não sei se isso também interessa outras pessoas. Fiquei, no entanto, muito satisfeito com a rápida publicação do trabalho pela editora Rodopi, mesmo sendo o mercado de livros em alemão sobre literatura brasileira tão restrito.
Além disso, em um apêndice, foi publicada pela primeira vez a correspondência entre Guimarães Rosa e seu editor alemão, Joseph Kaspar Witsch. Essa troca traz informações muito interessantes sobre os bastidores da preparação de uma grande publicação. Também se percebe o forte empenho na época pela publicação da literatura latino-americana e como isso era importante para a editora Kiepenheuer & Witsch.
O início do livro trata de um assunto pouco conhecido: a relação entre Guimarães Rosa e a Alemanha. Por quê?
É realmente interessante saber que João Guimarães Rosa veio pouco antes da Segunda Grande Guerra para Hamburgo, para assumir o posto de vice-cônsul. A fim de procurar compreender como o escritor experimentou e sentiu esse tempo tão turbulento e com tantas consequências trágicas para todo o mundo, analisei no meu livro, das mais diversas fontes, as poucas cartas e referências já publicadas sobre essa passagem dele pela Alemanha.
Você acredita que uma reedição da obra de Guimarães Rosa poderia encontrar ressonância entre o público alemão?
Com certeza. Acredito que o interesse pelos grandes clássicos da modernidade está sempre presente ou deveria pelo menos estar presente. Até que ponto o livro iria se tornar um best-seller ou seria lido, isso não sei dizer. Ele poderia, no entanto, ser vendido da mesma forma que Ulysses, de James Joyce, ou livros de Marcel Proust ou Robert Musil, isto é, como uma leitura obrigatória, que se tem na estante mas não necessariamente se lê. Pré-requisito para tal seria uma nova e radical tradução.
Seu livro traz um assunto relevante tanto para o público brasileiro em geral que se interessa pelo autor, quanto para os estudiosos e especialistas em Guimarães Rosa no Brasil. Há planos de tradução para o português?
Já que meu português foi aprendido através da leitura da obra de Guimarães Rosa e nunca vivi por muito tempo em um país de língua portuguesa, praticamente não tenho nenhum contato no Brasil. Por isso, acredito que meu livro possa permancer apenas com a versão em alemão. Seria para mim, no entanto, um motivo de grande orgulho e felicidade saber que o livro poderia ser lido no lugar para onde, na verdade, originalmente foi escrito.