Na ONU, Bolsonaro defende ineficaz "tratamento precoce"
21 de setembro de 2021O presidente Jair Bolsonaro usou nesta terça-feira (21/09) seu discurso de abertura da 76ª Assembleia-Geral das Nações Unidas para defender o desacreditado "tratamento precoce" promovido pelo seu governo, que consiste num coquetel de drogas ineficazes contra a covid-19, e para atacar o passaporte sanitário.
"Não entendemos porque muitos países se colocaram contra o tratamento precoce. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos", disse Bolsonaro na sede da ONU, em Nova York, num discurso que pareceu voltado para reenergizar sua base radical, que havia demonstrando insatisfação após o presidente pausar sua ofensiva contra o Supremo há duas semanas. Em alguns momentos, o tom foi similar ao que o presidente usa em sua lives na internet.
"Desde o início da pandemia apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce", prosseguiu Bolsonaro. "Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial", completou.
O Brasil é um dos poucos países do mundo cujo governo ainda promove o desacreditado "tratamento precoce", que consiste em drogas ineficazes contra a covid-19, como cloroquina e ivermectina, em detrimento das vacinas. Bolsonaro segue defendendo essas drogas mesmo após diversos estudos mostrarem sua ineficácia. Nos EUA, o governo do presidente Donald Trump chegou a promover a cloroquina em 2020, mas logo abandonou políticas nesse sentido e investiu pesadamente em vacinas. Hoje, o "tratamento precoce" só é defendido mundo afora em círculos conspiracionistas e de extrema direita.
Na ONU, Bolsonaro, que afirma não ter tomado vacina, também atacou iniciativas para instituir o passaporte de vacinação para viajantes e consumidores frequentarem espaços fechados. "Apoiamos a vacinação, mas nosso governo tem se posicionado contra o passaporte sanitário e qualquer obrigação relacionada à vacinação", disse o brasileiro.
Por outro lado, o presidente ainda elogiou a gestão brasileira da pandemia, destacando números da vacinação no país, que vem avançando, apesar de ele mesmo continuar a estimular a paranoia contra os imunizantes e se recusar a dar o exemplo ao evitar ser imunizado. O Brasil já registrou mais de 580 mil mortes por covid-19, a segunda maior marca oficial entre todos os países do mundo.
Ao longo da crise, Bolsonaro reiteradamente minimizou a gravidade da pandemia de covid-19, doença que chamou de "gripezinha". Ele também atuou sistematicamente para sabotar medidas de isolamento social e participou de eventos públicos nos quais abraçou e cumprimentou apoiadores. Ainda promoveu tratamento ineficazes e alimentou paranoia sobre vacinas. Seu governo também foi amplamente criticado por demorar para comprar imunizantes de laboratórios conceituados ao mesmo tempo em que abria as portas para empresas de fachada suspeitas de participação em esquemas de corrupção. Dois ministros da Saúde deixaram o governo por causa de divergências com o presidente.
Essa é a terceira vez que Bolsonaro discursa na abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Política ambiental, corrupção e "socialismo"
Bolsonaro abriu seu discurso afirmando que pretendia "mostrar um Brasil diferente daquilo publicado em jornais e mostrado em televisões". Ele prosseguiu com elogios ao seu próprio governo, afirmando que sua administração não registrou casos de corrupção – o que é desmentido pelas denúncias envolvendo compras suspeitas de vacinas e negócios envolvendo aliados e sua própria família
Ele ainda descreveu falsamente que o Brasil era um país "à beira do socialismo" antes do seu governo.
"O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo. Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo. Nossas estatais davam prejuízos de bilhões de dólares, hoje são lucrativas. Nosso Banco de Desenvolvimento [BNDES] era usado para financiar obras em países comunistas, sem garantias. Quem honrava esses compromissos é o próprio povo brasileiro. Tudo isso mudou. Apresento agora um novo Brasil, com sua credibilidade já recuperada", disse Bolsonaro no início do discurso, que ocorre duas semanas após ele fazer ameaças golpistas ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro também descreveu os atos de seus apoiadores no 7 de Setembro como a "maior manifestação de nossa história", embora o país tenha sido palco de manifestações bem maiores nas últimas décadas, como entre 2015 e 2016 contra o governo Dilma Rousseff, ou nos comícios das Diretas Já nos anos 1980.
O presidente ainda listou investimentos, mencionou leilões de aeroportos e construção de ferrovias e abordou os atos antidemocráticos do Sete de Setembro, que reuniram sua base nas ruas.
Bolsonaro também exaltou sua política ambiental e repetiu afirmações que já havia feito em discursos anteriores na ONU, como o Brasil ter "66% do seu território" ocupado por vegetação nativa.
As falas de Bolsonaro sobre meio ambiente ocorrem um dia após a divulgação de que a Amazônia perdeu uma área equivalente a cinco vezes o tamanho de Belo Horizonte apenas em agosto, o maior índice para o mês em dez anos. O desmatamento acumulado desde janeiro de 2021 também é o pior em uma década, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
O brasileiro ainda fez uma menção indireta ao marco temporal, ao mencionar que terras indígenas ocupam 14% do território nacional. Segundo ele, "indígenas cada vez mais desejam usar suas terras para a agricultura", o que é contestado por liderança indígenas que temem a destruição de suas terras. No Brasil, Bolsonaro já chamou as terras indígenas de "zoológicos humanos" e reclamou de indígenas que "vivem na idade da pedra".
O STF está analisando o marco temporal desde o dia 26 de agosto. O mecanismo estabelece que índios só podem reivindicar a demarcação de terras já ocupadas por tribos antes da data de promulgação da Constituição de 1988. A tese é amplamente contestada por representantes indígenas e organizações ambientais e de defesa dos direitos humanos.
Isolamento
O discurso ocorreu em um momento de intensificação do isolamento internacional do governo Bolsonaro. Em 2019 e 2020, o presidente brasileiro já havia falado em ocasiões delicadas, marcadas pelo derretimento da imagem do país por causa do desmonte de políticas ambientais e queimadas, mas em 2021 Bolsonaro se vê na arena internacional sem aliados, como o americano Donald Trump e o israelense Benjamin Netanyahu, que deixaram o poder no primeiro semestre. Nos EUA, o presidente já não conta com a mesma proximidade com a Casa Branca, agora comandada pelo democrata Joe Biden, que já sinalizou adotar uma posição mais incisiva em temas ambientais.
Sem seus velhos aliados, o presidente se limitou, nesta segunda-feira, antes do discurso, a travar encontros bilaterais com o populista premiê britânico, Boris Johnson, e o ultraconservador presidente polonês, Andrezj Duda, que representam países que não aparecem em listas de principais parceiros econômicos do Brasil.
Por outro lado, a política externa de Bolsonaro também passou por mudanças de comando desde o discurso na Assembleia-Geral de 2020. O ultradireitista Ernesto Araújo, conhecido por adotar posições alimentadas por teorias conspiratórias, deixou o comando do Itamaraty em março. No seu lugar entrou Carlos França, que tem tido um comportamento mais discreto, embora não tenha alterado significativamente o rumo da pasta. Já o assessor especial para Assuntos Internacionais Filipe G. Martins, outro seguidor do guru de extrema direita Olavo de Carvalho, continua no cargo.
O discurso de Bolsonaro nesta terça-feira também seguiu uma linha similar às falas do presidente nas aberturas da Assembleia-Geral da ONU em 2019 e 2020. No seu primeiro ano como presidente, Bolsonaro disse que era uma "falácia dizer que a Amazônia é um patrimônio da humanidade", atacou o que chamou de "ambientalismo radical" e usou o palco internacional para falar de outros temas que têm apelo entre seus apoiadores brasileiros, entre eles membros da direita nacionalista e setores evangélicos. Na ocasião, ele mencionou o "Foro de São Paulo" – um tema que alimenta teorias conspiratórias nesses setores – e também afirmou falsamente que o Brasil estava "à beira do socialismo" antes do seu governo. Ele também reclamou dos seus antecessores e elogiou seu então ministro da Justiça Sergio Moro, com quem romperia poucos meses depois.
Em 2020, com a abertura ocorrendo de maneira virtual por causa da pandemia, Bolsonaro usou a ocasião para mais uma vez atacar ambientalistas. Ele disse que era vítima de uma campanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal e, sem apresentar provas, culpou indígenas e caboclos por incêndios nesses biomas. Ele ainda defendeu sua gestão da pandemia, evitando mencionar sua postura negacionista ao longo da crise. À época desse discurso, o Brasil acumulava 140 mil mortes por covid-19 e 4,6 milhões de casos, hoje os totais são 590 mil mortes e mais de 20 milhões de casos.
Tanto em 2019 quanto em 2020, as falas de Bolsonaro provocaram críticas de organizações ambientais.
Tradicionalmente, desde 1949 cabe ao Brasil fazer o discurso de abertura, seguido dos Estados Unidos. O primeiro chefe de Estado brasileiro a falar no encontro foi João Baptista Figueiredo. Desde então, somente Itamar Franco não chegou a discursar na Assembleia-Geral da ONU.
Vacina, pizza, protestos
O presidente chegou a Nova York no domingo, acompanhado de comitiva integrada, entre outros, por ministros, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e o deputado Eduardo Bolsonaro. Bolsonaro é o único líder de um país do G20 que declarou não ter se vacinado. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, um costumaz crítico de Bolsonaro, aproveitou a ocasião para criticar a presença do brasileiro. O nova-iorquino também usou seu Twitter para indicar a Bolsonaro uma lista de postos de saúde da cidade que aplicam a vacina.
Sem um comprovante de imunização, o presidente se viu obrigado a comer em áreas externas de restaurantes – Nova York exige passaporte sanitário para frequentar espaços internos de estabelecimentos culinários. Ele ainda tentou tirar proveito midiático da situação ao comer pizza e se deixar fotografar com seus ministros numa calçada da cidade, no que foi encarado por críticos como uma tentativa de posar como "homem do povo".
Já as horas seguintes da comitiva foram mais tensas. Manifestantes brasileiros protestaram contra Bolsonaro em frente ao hotel em que o presidente se hospedou. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, perdeu a compostura e mostrou o dedo médio para os manifestantes quando chegava ao local numa van com outros ministros. Já Carlos França, do Itamaraty, pareceu fazer um gesto imitando uma arma para os manifestantes. Outros manifestantes colocaram um caminhão com três telões para circular pelas ruas de Nova York, exibindo mensagens em inglês como "Bolsonaro está queimando a Amazônia".
A viagem também foi marcada por um episódio similar ao que ocorreu durante o deslocamento presidencial aos EUA em março de 2020, quando boa parte da comitiva voltou infectada pelo coronavírus. Desta vez, um diplomata brasileiro do cerimonial do Itamaraty que viajou previamente para organizar a chegada do presidente testou positivo para o vírus.
O retorno da comitiva ao Brasil está previsto para esta terça-feira.