Motociclistas se tornam eleitores disputados nas capitais
6 de setembro de 2024No começo de abril, em quase todas as paradas de ônibus de São Paulo era possível ler a mesma frase, em letras brancas e amarelas destacando a imagem de um rapaz debruçado sobre um capacete – e, este, sobre uma motocicleta: "O que o motoca [sic] quer, a prefeitura faz".
Quatro meses antes, antecipando sua estratégia para as eleições de outubro, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) tirara do papel um projeto que já tinha operado, com diferenças estruturais, em algumas avenidas da cidade duas décadas atrás: um corredor reservado para motociclistas no espaço onde eles trafegam usualmente por entre os automóveis.
A medida, chamada de Faixa Azul, foi adotada ao longo de 2022 em duas das principais artérias da metrópole: a Avenida 23 de Maio e a Bandeirantes, que ligam as zonas Sul e Norte ao centro, passando pelo aeroporto de Congonhas. Depois, se tornou a bandeira eleitoral de Nunes – ao lado da tarifa gratuita do sistema de ônibus aos domingos.
Foi assim que, de setembro de 2023 para cá, o total de corredores para motos aumentou em quase dez vezes seu tamanho: de 22 quilômetros naquele mês para pouco mais de 200 quilômetros. "É uma das ações que tenho o maior orgulho", afirmou Nunes, já em ritmo de campanha, no fim de maio.
Mas não é só Nunes que investe na Faixa Azul como promessa de campanha. Apesar de ainda não haver comprovações de sua eficácia, candidatos de outras cidades também possuem propostas de corredores exclusivos para motociclistas, como Eduardo Paes (PSD), no Rio de Janeiro, e Bruno Reis (União Brasil), em Salvador.
O uso eleitoreiro desta medida já foi percebido até pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), órgão federal responsável por validar as implementações dos corredores, como alguns membros da pasta disseram reservadamente à DW.
Bases não tão coesas
Para alguns analistas, a Faixa Azul surgir como estratégia eleitoral não é trivial. Ao contrário, reflete uma mudança em parte significativa do eleitorado urbano brasileiro que, por sua vez, é resultado das novas dinâmicas socioeconômicas do país.
Eles notam como o aumento de entregadores plataformizados no Brasil não desaguou automaticamente no surgimento de uma categoria profissional nos moldes tradicionais, que favoreceria a criação de sindicatos fortes. Como ainda são dispersos, mas em maior quantidade, se tornaram alvos de partidos políticos.
"Isso aconteceu por causa da pressão que essas pessoas exerceram nos últimos anos", sugere Rafael Grohmann, pesquisador da Universidade de Toronto, no Canadá, lembrando das mobilizações que chegaram a parar algumas capitais brasileiras durante a pandemia, em 2020. "Ela fez com que todos os candidatos passassem a colocar alguma promessa para motociclistas nos seus programas políticos."
Mas, para Grohmann, os partidos cometem um erro de leitura ao abordá-los dessa forma. "A ‘categoria' tenta, de alguma forma, atuar de maneira pragmática, forçando que os candidatos se esforcem para atender às demandas dela. Mas isso não significa que esses trabalhadores votam coesamente."
Em 2022, segundo o Censo de 2022, do IBGE, o Brasil possuía em torno de 1,5 milhão de trabalhadores plataformizados apenas em serviços de entregas ou de transporte privado. O número representa quase 2% da população ocupada do país. Desses, cerca de 790 mil eram motociclistas: sobretudo entregadores de comida e de produtos comprados em aplicativos, mas também mototaxistas que operam nas fronteiras da legalidade em locais como Rio de Janeiro (RJ) e Recife (PE), por exemplo.
Em duas décadas, vale dizer, o volume de motos cresceu cinco vezes na composição da frota de automóveis do Brasil, saindo de 5,7 milhões de registros em 2003 para 32,3 milhões no ano passado, de acordo com a Senatran.
Corredores como promessa
No fim de março, dias após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviar ao Congresso Nacional uma proposta de regulamentação do trabalho por plataformas negociada com gigantes do setor, como a Uber e a 99Táxi, motociclistas em diversas cidades do país organizaram protestos paralelos contra o texto.
Em Belo Horizonte (MG), enquanto se concentravam na Praça Sete, no centro da cidade, o professor Fábio Tozi, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), percebeu que havia algo mais profundo acontecendo ali. "Para mim, aquilo era um termômetro da eleição municipal", recorda ele, que se debruça há mais de uma década sobre o fenômeno.
"Como associações e sindicatos não representam, de fato, a maioria, eles são trabalhadores que não se sentem ouvidos", diz. "Em paralelo, são bastante sensíveis à ideia de que são empreendedores que precisam garantir autonomia. A CLT não diz nada a eles. E, agora, os candidatos entenderam que precisam falar com eles", completa.
Grohmann, no entanto, revela que há ponderações internas dos partidos sobre o peso que motociclistas terão nas urnas, em outubro. "Gente que diz que, apesar de relevantes, eles ainda não se transformam tanto em votos."
Ainda assim, as campanhas têm se dedicado a prometer entregas. Ou melhor: corredores exclusivos. No Recife, motociatas são parte da rotina da campanha do candidato Daniel Coelho (PSD), que usa como principal bandeira a implementação da Faixa Azul nas avenidas da capital pernambucana. De acordo com o Comitê Municipal de Redução de Acidentes de Trânsito, 45% das vítimas fatais no trânsito recifense ao longo de 2023 eram motociclistas. Com cerca de 6% das intenções de voto, Coelho ainda está distante do primeiro colocado nas pesquisas, o atual prefeito João Campos (PSB), que soma quase 80%.
Já o atual prefeito de Salvador (BA), Bruno Reis prometeu em maio que a administração iria instalar faixas especiais para motos na cidade. Mais do que Recife, a maioria das mortes nas ruas soteropolitanas envolve motociclistas (53%), de acordo com dados oficiais. O projeto ainda não começou – mas Reis lidera as pesquisas com cerca de 66% das intenções de voto.
No Rio, seguindo a estratégia de Nunes em São Paulo, um trecho de dois quilômetros da autoestrada Lagoa-Barra recebeu uma faixa reservada para motos no final do mês passado. A medida é parte de um aceno iniciado por Eduardo Paes há um ano, quando sua gestão lançou um aplicativo próprio para atender à demanda de mototáxi. Era, antes, uma tentativa de regulamentar a profissão que, hoje, movimenta 30 mil motociclistas na cidade.
"É porque as prefeituras não têm poder de regulação, que talvez seja a grande demanda da ‘categoria'. Então, o principal instrumento que elas ainda têm em mãos são as faixas especiais", aponta Tozi.
Proposta controversa
Embora governos municipais tenham autonomia para mudar algumas regras de trânsito, elas precisam ser aprovadas pela Senatran, como os corredores especiais de motos. A DW pediu ao órgão o volume total de faixas desse tipo em operação no Brasil, bem como o número de solicitações feitas por prefeituras para implementá-las. A reportagem também solicitou os critérios utilizados pela pasta para avaliar cada programa, mas não recebeu respostas até a data da publicação do texto.
"Em um primeiro olhar, a sensação é que esses corredores organizam o trânsito. Mas é o contrário", vocifera Daniel Santini, que estuda políticas de mobilidade urbana na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. "Além de induzir que mais motos circulem por ali, ainda há uma permissão para que eles andem em uma velocidade diferente à dos carros. É um espaço de risco enorme", completa.
Segundo dados do Detran-SP compilados por ele entre janeiro e maio de 2024, 411 motociclistas morreram no trânsito de São Paulo no período – o mesmo em que a ativação da Faixa Azul estava a pleno vapor. O número representa uma alta de 23% em comparação ao mesmo período do ano passado.
Para Santini, a complexidade é que as associações representativas apoiam a medida, robustecendo a promessa eleitoral como uma entrega relevante. Na sua análise, não é trivial, porque os entregadores dependem justamente de meios mais rápidos de circulação pelas cidades para entregar mais e, então, aumentar sua renda.
Em 2014, em um relatório sobre as faixas exclusivas que funcionaram entre 2006 e 2013 em São Paulo, a CET chegou à conclusão de que, apesar dos esforços, "não foram alcançados os patamares mínimos de segurança na circulação dos motociclistas e dos demais usuários das vias onde foram implantadas as faixas exclusivas". Pior do que isso, segundo o documento, "tais vias apresentaram elevação dos números de acidentes, mesmo quando o resto da cidade começava a inverter sua curva de acidentalidade".
A DW chegou a autenticidade do relatório com a CET, que reforçou as diferenças entre os dois projetos: naquela época, os corredores funcionavam na extrema-esquerda das vias e eram obrigatórios para motociclistas, concentrando o trânsito. A Faixa Azul opera no corredor do meio e é reservada, mas não obrigatória. "Se o projeto nacionalizar é um tremendo problema, porque a única coisa boa dele é a capacidade de convencimento feito pelo marketing", prossegue Santini.
Mas os dilemas nem sempre envolvem apenas corredores especiais. Em Belo Horizonte, por exemplo, embora a segurança viária seja uma questão relevante, há uma série de demandas que cabem debaixo do guarda-chuva das "condições de trabalho".
"Eles querem locais públicos para carregar o celular, para fazer refeições, distribuição de água, banheiros abertos. Isso em uma cidade onde há relatos de motociclistas expulsos de shoppings centers, por exemplo", conta Tozi. "Para a prefeitura, isso é positivo [as demandas por melhores condições], porque são medidas que ela pode tomar facilmente", segue.
Não são elementos simples em um país onde quase um terço (27,8%) de toda a frota é composta por motocicletas, segundo a Senatran. Em 1,9 mil cidades brasileiras, elas são o tipo de veículo mais comum – e, em algumas delas, a moto é quase a totalidade dos veículos em circulação. "Todo mundo sabe que é uma questão complexa. Só precisa ser abordada dessa mesma forma", finaliza Santini.