Miss Universo "rompeu o silêncio imposto pela ditadura"
24 de novembro de 2023A inesperada vitória da Nicarágua no concurso Miss Universo 2023 sacudiu o país centro-americano. No sábado (18/11), a jovem de 23 anos Sheynnis Palacios, graduada em Comunicação Social, foi coroada a mulher mais bonita do mundo em evento em El Salvador, despertando sentimentos de euforia e patriotismo em um povo marcado por uma crise sociopolítica que já dura cinco anos.
Em um ato de espontaneidade, as ruas da Nicarágua ficaram lotadas de pessoas comemorando a conquista de Palacios.
"O povo comemorou o triunfo, como comemorou todos os momentos felizes de nossa história, que tocou o sentimento nacional e mobilizou o povo por amor à Nicarágua", analisa Luis Enrique Mejía Godoy, cantor, compositor e poeta nicaraguense exilado na Costa Rica.
Vitória com dimensão política
Pela primeira vez desde 2018, a bandeira nacional azul e branca voltou a tremular maciçamente na Nicarágua. O regime do autoritário presidente Daniel Ortega, no poder ininterruptamente há 16 anos, proibiu manifestações públicas e declarou guerra à bandeira nacional após ela se tornar símbolo dos protestos por democracia de 2018, violentamente reprimidos pelo governo.
A socióloga Elvira Cuadra, diretora do Centro de Estudos Transdisciplinares da América Central, explica à DW que o título de Miss Universo 2023 adquiriu conotações políticas. "O evento permite que as pessoas no país expressem seu senso de pertencimento e orgulho e levem às ruas os símbolos patrióticos proibidos pelo governo".
Além disso, segundo ela, um segmento da população "se identifica totalmente" com Palacios "porque ela vem de uma camada socioeconômico de baixa renda, é uma pessoa trabalhadora, que alcançou seus objetivos com muito esforço pessoal e de sua família".
Um desfile cheio de simbolismo
Na noite do concurso, muitos nicaraguenses, dentro e fora do país, viram nas entrelinhas mensagens de Palacios dirigidas contra o regime de Ortega: em seu elegante vestido branco e capa azul, ela não usava apenas as cores da bandeira nacional da Nicarágua, mas também parecia invocar a imagem da Imaculada Conceição, padroeira do país. Para os espectadores, isso pode ser traduzido como uma demonstração de apoio à Igreja Católica, severamente perseguida pelo regime Ortega, com a expulsão e prisão de padres e a proibição de atividades religiosas.
Logo após o anúncio da vitória, a nova miss universo dedicou a coroa "às meninas de todo o mundo" e acrescentou: "Quero dizer a todos os nicaraguenses que estão me assistindo, nós conseguimos, fizemos história (...) meu país vai mudar e muitas portas vão se abrir".
Palacios: adversária de Ortega e Murillo?
Na opinião de Elvira Cuadra, o concurso de beleza conseguiu pressionar o governo nicaraguense que, "em seu desejo de controle total, não consegue estabelecer a diferença entre esse tipo de evento e os de natureza política".
A socióloga, porém, teme que o governo veja Palacios não como um símbolo, mas como uma "adversária", considerando que ela participou dos protestos de 2018. Fotos antigas em redes sociais mostram a jovem protestando por democracia.
O fato é que a vitória de Palacios aumentou ainda mais a tensão política do país centro-americano. Na quarta-feira, a vice-presidente da Nicarágua e esposa de Ortega, Rosario Murillo, criticou a "exploração grosseira e a comunicação terrorista tosca e maligna, que visa transformar um momento agradável e merecido de orgulho e celebração em golpismo destrutivo", em referência aos oponentes que usam a imagem da miss como uma figura de protesto.
Um dia antes, as autoridades nicaraguenses proibiram dois artistas de pintar um mural em homenagem à recém-coroada Miss Universo.
"Considerando a atitude e a simpatia do povo em relação a Sheynnis [Palacios], é possível que, mais tarde, o governo faça uma retaliação contra ela", acredita Cuadra. "Ele quebrou o silêncio imposto pela ditadura", acrescenta.
Por sua vez, o cantor, compositor e poeta nicaraguense Luis Enrique Mejía Godoy não descarta que o regime de Ortega "queira usar essa impressionante conquista global para seus próprios interesses".
No entanto, em entrevista à DW, ele insiste que "essa vitória pertence somente a Sheynnis [Palacios] e ao seu povo. Ela agora representa não apenas o povo nicaraguense, mas a América Central e o mundo inteiro. Ela disse muito claramente que continuará lutando pelos direitos das mulheres, pela igualdade e pela mudança social".
Do exílio na Costa Rica, Mejía Godoy enfatiza que a celebração do título de beleza "conseguiu mobilizar nosso povo mais uma vez e quebrar o silêncio imposto pela ditadura de Ortega-Murillo. Sem dúvida, é uma lufada de ar fresco e oxigênio para a vida dos nicaraguenses dentro e fora do nosso território".
Crise política
A Nicarágua vive cinco anos de uma crise sociopolítica que, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), deixou pelo menos 355 mortos, dos quais Ortega reconhece 200, e levou mais de 100 mil nicaraguenses ao exílio, além do fechamento da maior parte da imprensa independente e de mais de 400 ONGs.
A crise se acentuou nas eleições de novembro de 2021, quando Ortega foi reeleito para um quinto mandato, o quarto consecutivo e o segundo tendo sua esposa como vice-presidente. Sete eventuais adversários que poderiam ter representado um sério desafio à reeleição de Ortega foram presos, juntamente com 32 opositores.
Na ocasião, as eleições na Nicarágua foram duramente criticadas pela comunidade internacional, inclusive pela União Europeia e por grupos internacionais de defesa dos direitos humanos, que descreveram o pleito como uma votação de fachada.
Ortega, que está no poder desde janeiro de 2007, foi empossado em janeiro de 2022 para governar até 2027. O ex-guerrilheiro sandinista de 76 anos, que governa a Nicarágua sem contrapesos desde 2012, completa 16 anos consecutivos no poder, depois de liderar uma junta governamental de 1979 a 1985 e de presidir pela primeira vez o país de 1985 a 1990.