Vargas Llosa, paladino da literatura no Festival de Berlim
13 de setembro de 2020Enquanto por todo o mundo festivais de literatura são cancelados ou adiados, a Feira do Livro de Frankfurt transcorre em versão digital, leituras e debates substituem conversas e negociações nos estandes, o Festival Internacional de Literatura de Berlim (ILB) conseguiu organizar um respeitável programa com apresentações ao vivo de escritores.
As possibilidades de encontros e debates são atraentes. Porém na noite de abertura do 20º ILB as expectativas logo se aplacaram, diante das fileiras vazias da Sala de Música de Câmara da Filarmônica de Berlim. Havia espaço para 1.180 espectadores – se não fosse o vírus e as rigorosas normas de higiene para evitá-lo.
Até mesmo a ministra alemã da Cultura, Monika Grütters – que, de uma maneira ou outra, acompanha o evento desde sua criação – mostrou-se abalada diante do público extremamente parco, distribuído em assentos bem espalhados. Ela prometeu "refletir de forma bem diferenciada, com receitas pragmáticas, sobre como se pode recolocar em movimento as atividades de palco".
Ela defendeu que se lide de forma muito restritiva com as regras de distanciamento generalizadas, dando-se prioridade, em vez disso, aos testes individuais, embora possivelmente incômodos e complicados. A reanimação da vida cultural é vital para a democracia, afirmou Grütters em sua saudação, e com essa ideia central, que repetiu em outras ocasiões, logo apresentou o convidado de honra da noite.
Um Nobel octogenário e o potencial transformador da literatura
Já pelo fato de, aos 84 anos, o autor Mario Vargas Llosa ter empreendido a viagem até a Alemanha em tempos de pandemia, o diretor do festival, Ulrich Schreiber, o saudou como "um herói de nosso tempo", numa referência ao romance do escritor russo Mikhail Lermontov, de 1839.
Em seu discurso, o Nobel da Literatura peruano evocou com ênfase o poder de sua atividade, e seu potencial para transformar vidas: "As ditaduras são profundamente desconfiadas em relação à literatura, sabem que ela representa um perigo para elas."
Durante 300 anos, sob os regimes coloniais, reinou na América Latina um "silêncio romanceiro", antes que, no século 18, os primeiros romances encontrassem o caminho da fantasia para a ficção. "A fantasia sempre existe, mas romances são mais do que diversão, eles abrigam a recusa de se submeter, apontam para uma outra realidade."
"A literatura tem o dom de nos mostrar que algo está errado", explicou Llosa, que desde sua candidatura presidencial fracassada em 1990 vive entre a Espanha e Londres. Literatura ajuda a estabelecer a insatisfação e dissidência: "Se, como cidadãs e cidadãos, não queremos ser zumbis, criaturas que aceitam tudo o que seja imposto de cima para baixo, temos que infiltrar a sociedade com literatura."
O autor – que há muito abandonou o entusiasmo juvenil pelo comunismo e se define como liberal – não fala de modo mais concreto. Referindo-se apenas às sociedades não livres em geral, ele não menciona nenhum dos países latino-americanos onde a democracia está ameaçada. O que torna ainda mais eloquente sua referência ao potencial utópico da escrita: "Sobretudo em sociedades que não são livres, a literatura é um elemento de ação: ela nos mostra que o impossível pode ser possível."
O Nobel da Literatura de 2010 finalizou seu discurso com palavras que um dia talvez venham a adornar um calendário literário: "Livros são uma possibilidade de fazer os seres humanos sonharem com um outro mundo, melhor."
Apesar da pandemia do coronavírus, o Festival de Berlim oferece, em seu 20º aniversário, grandes nomes internacionais, incluindo a polonesa Olga Tokarczuk, Nobel da Literatura em 2018. Entre os demais convidados estão David Grossman, Daniel Kehlmann, Ingo Schulze, Nora Bossong, Thomas Hettche, Colum McCann, Leif Randt, Ivan Krastev e Richard Ford. Quase todos eles também se apresentarão online – o que compensa um pouco a falta de público nos eventos ao vivo.