Lula e as trincheiras que dividem o Brasil
18 de abril de 2018Para mim, Lula é menos um caso criminal do que um símbolo das fissuras do Brasil. O que está em disputa são ideias totalmente diferentes de Brasil. Duas narrativas se enfrentam irreconciliavelmente.
Lula virou o campo de batalha de uma sociedade que nunca existiu como sociedade e que há 500 anos é dominada por antagonismos, contradições e extremos. Quando me pergunto sobre o que mantém o Brasil unido, encontro: a língua, a Seleção e o peculiar orgulho de ser brasileiro. Mas o que mais existe além disso, com o que todos podem concordar?
Até hoje, quem manda no Brasil são grupos de interesse que não pensam no bem comum, mas na preservação dos seus privilégios. A elite mesquinha deste país nunca entendeu que todos vivem melhor quando ninguém vive mal. Uma ideia coletiva, cívica e positiva de nação, portanto, nunca se formou.
Quando falamos de Lula são reveladas essas trincheiras que atravessam o Brasil. São rachaduras sociais, étnicas e geográficas. Usando um ditado alemão do Fausto de Goethe, pode-se dizer: "Diga-me como você vê Lula, e eu lhe direi quem você é."
Questionei duas pessoas, que não poderiam ser mais diferentes, sobre o Lula. Elas só têm uma coisa em comum: ambas dizem ter orgulho de serem brasileiras. E as duas, em seus contrastes, fazem desse país o que ele é.
Uma se chama Gustavo Chavaglia. Ele mora na pequena cidade de Ituverava, no longínquo interior de São Paulo, onde a cana-de-açúcar domina a economia e as paisagens. Aos 48 anos, ele é ruralista e presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja de São Paulo (Aprosoja). Orgulhoso produtor rural, ele considera sua profissão a espinha dorsal econômica do Brasil: "A produção rural foi e é a responsável pela segurança alimentar e pelos excedentes que possibilitaram o superávit na balança comercial."
Chavaglia é descendente de imigrantes europeus, ele dirige uma SUV e é branco. Quando nos encontramos, ele veste uma camisa com gola larga, jeans e sapatos de couro, e usa um relógio caro no pulso. A minha impressão é de um homem bem resolvido, amigável e cordial.
Não é difícil perceber que Gustavo Chavaglia não gosta nem de Lula nem do PT. "Nossa bandeira é verde e amarela", diz. "Ela não é vermelha." Durante a conversa, Chavaglia reclama do "populismo com viés eleitoreiro que sempre foi a marca das campanhas da esquerda brasileira". Outros alvos de sua rejeição são os ambientalistas, que ele chama de "ambientaloides"; o Movimento Sem Terra, MST ("eles não trabalham"); e os movimentos indígenas (que também "não trabalham").
São as mesmas frases que já escutei muitas vezes no interior do Brasil, de fazendeiros e agricultores brancos, seja em São Paulo, seja em Mato Grosso do Sul ou Rondônia. Nesse ambiente é de bom tom chamar movimentos sociais de "vagabundos".
Chavaglia acha bom e justo que Lula esteja preso. "Cansamos de demagogia", diz. "Mesmo assim, a sensação não é de comemoração, mas de indignação pelas atrocidades cometidas pela classe política." O produtor rural, para ele, é vítima de incompreensão há muitos anos. "Em todas as gestões de ex-presidentes, o produtor rural sobreviveu e se adaptou à falta de política pública para o agronegócio." Fico um pouco surpreso com essa afirmação, pois achei que o agronegócio era um dos grandes beneficiários dos últimos 20 anos.
Sobre a ditadura militar, Chavaglia tem uma opinião que tenho ouvido cada vez mais nos últimos anos. É o revisionismo de direita, que busca relativizar os crimes e a corrupção dos militares: "É necessário que se observe que uma intervenção militar em 1964 se deu pelo clamor público frente à ameaça de pseudocomunistas".
Quando finalmente pergunto a Chavaglia se os produtores rurais não estavam se dando muito bem durante o governo Lula, que era um tempo de boom econômico, ele diz que esse boom não se deveu ao PT, mas ao governo antecessor, de FHC: "O país gozava da estabilidade econômica do Plano Real." Ele resume os 13 anos do PT em duas palavras: "Desmando e irresponsabilidade".
Para Quênia Emiliano, o mundo é outro. Ela mora a 530 quilômetros de Chavaglia, mas é como se vivesse em outro planeta. Esta jovem de 28 anos divide um apartamento com seus irmãos no bairro do Riachuelo, no Rio de Janeiro. Atualmente, está terminando sua faculdade de Direito e faz estágio na Procuradoria-Geral do Município do Rio de Janeiro.
Quando ela se apresentou como nova estagiária – ela passara em concurso público –, a surpresa foi grande. Porque Emiliano é negra, enquanto quase todos os seus colegas são brancos. "As posições de poder no Brasil são dos brancos", diz ela. "Aos negros só restam os piores serviços."
Quando a encontro, depois do trabalho, ela usa um elegante vestido verde com estampas africanas, brincos e unhas pintadas de vermelho. O pai de Emiliano trabalhava como camelô, sua mãe cuidava de idosos. Seu bisavô era escravo.
Agora, a jovem eloquente e decidida tem diante de si uma carreira como advogada. E, por isso, ela é eternamente grata a um homem: "O presidente Lula!" Ela diz que Lula despertou nela e em milhões de outros brasileiros a esperança de um Brasil melhor e criou possibilidades concretas. Só recentemente Emiliano voltou de uma viagem à Europa. Nunca alguém da família dela havia viajado fora do país.
"Nasci nesta nação chamada Brasil", diz Emiliano. "Pobre, negra e filha de família humilde, e desde muito cedo conheci o que era a luta para sobreviver. Muitas vezes não havia o que comer, o que beber, ou o que vestir. Vi no trabalho e estudo a única saída para uma vida melhor, mas foram as oportunidades do governo Lula que me levaram à universidade e me trouxeram aonde estou hoje." Quênia Emiliano acredita que só conseguiu estudar graças à ampliação do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).
Tal como acontece com Gustavo Chavaglia, a origem e a experiência pessoal de Emiliano são fundamentais na avaliação da detenção de Lula. Para ela, é uma prisão política e estratégica: "Faz parte do golpe. Querem um país pobre, um país onde só os ricos e brancos podem estudar." Desde a condenação de Lula, Emiliano sente raiva, tristeza e impotência.
Com Emiliano e Chavaglia, dois polos se enfrentam no Brasil. O ruralista branco da SUV e a estudante negra do vestido africano. Ambos tiveram condições sociais e econômicas completamente diferentes desde o nascimento. Hoje têm visões completamente diferentes do passado. E, portanto, também do futuro.
Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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