"Isso é lacração" e "Meu Deus, nossos jovens não lerão mais Machado de Assis? Aonde iremos parar?"
Esses foram alguns dos comentários que li nas redes sociais em um dos posts que trazem a seguinte notícia: de 2026 até 2029, a lista de leitura obrigatória da Fuvest, um dos vestibulares mais tradicionais do país, será composta exclusivamente por livros escritos por mulheres.
Ela foi muito compartilhada por veículos e páginas da extrema direita. Estes, sem nenhuma sutileza, se mostraram incrivelmente incomodados e incitaram ódio em seus leitores e seguidores.
Antes de prosseguir com a discussão, cabe aqui um pouco de história. A primeira Fuvest foi a de 1977. No entanto, a primeira edição que contou com uma lista de leitura obrigatória foi a de 1989. Já são 36 anos com listas literárias e 20 edições foram compostas exclusivamente por homens.
Até o momento, apenas quatro mulheres estiveram na lista: Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles e Helena Morley.
Tivemos 20 edições compostas exclusivamente por homens. Por que a notícia de que, pela primeira vez, teremos uma composta exclusivamente por mulheres incomoda tanto?
O mito da autonomia da obra
Para responder a essa pergunta, tive a oportunidade de entrevistar a Tarsilla Couto de Brito. Ela é poeta, ensaísta e professora de teoria literária na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). Seu foco de pesquisa tem sido a escrita de mulheres, e recentemente realizou um pós-doutorado na Argentina sobre o feminicídio na literatura brasileira.
Para iniciar a discussão, ela contextualiza: "Primeiro, as pessoas tendem a pensar que a literatura é algo que faz parte da vida sem se sujar de vida; gostam de pensar também que a literatura não deveria se misturar com assuntos considerados baixos como política, polêmicos como religião; costumam dizer que literatura para ser boa não tem que se preocupar com denunciar nada, que literatura de verdade diz as coisas mais importantes sem sujar as mãos. Esse senso comum é facilmente datado, inaugura a configuração moderna da literatura e tem um nome teórico: autonomia da obra de arte. Esse é o argumento central em torno do qual se ergue a barricada contra a lista da Fuvest".
Trazendo o debate para o Brasil, ela comenta: "É possível demonstrar que o mundo das letras não funciona de forma a valorizar a autonomia da obra de arte assim na prática: existem inúmeras forças que agem com a finalidade de promover uma ideia, um livro ou um autor. Cem anos atrás, na época dos modernistas paulistas, as principais forças eram a Academia Brasileira de Letras, os jornais do eixo Rio-São Paulo com suas notas de crítica literária, as poucas editoras e importadoras de livros e os mecenas como Paulo Prado."
"Mais ou menos na mesma época em que ocorreu a Semana de Arte de 22 ocorreram outros eventos importantes no Nordeste que, se tivessem sido bem agenciados, seriam considerados nas grades curriculares das escolas atuais como eventos modernistas. Mas, segundo o relato de Gilberto Freyre, o modernismo do Nordeste perdeu a disputa e não entrou para a grande história da literatura brasileira. Tem sempre alguém dando um empurrãozinho."
Pouco mudou sobre isso: "Dizer o que é a boa literatura, quem deve ser lido, como deve ser lido traz superpoderes e, por isso, é algo disputadíssimo. Hoje, as listas de processos seletivos fazem parte dessa disputa, assim como feiras literárias como a Flip, prêmios como Jabuti, casas de escrita criativa como a Casa das Rosas, as faculdades de letras de todo o país, os professores-poetas, os documentos governamentais que regulam o ensino de língua portuguesa e literatura. A autonomia da obra de arte literária é um dos grandes mitos fundadores da modernidade."
Alternativas ao cânone
Sobre a lista composta exclusivamente por mulheres, ela acredita que o impacto será positivo. "Afinal, lemos pouca literatura dissidente do cânone na escola. E quando a lemos, lemos com os mesmo instrumentos de leitura, como a tal da ideia da autonomia, e ainda podemos acrescentar: ironia, paradoxo, singularização da personagem, estranhamento da linguagem – são todos protocolos de leitura da modernidade que estão presentes nos livros didáticos como se tivessem nascidos juntos com Adão e Eva ou com Gilgamesh (a depender do credo do leitor)."
"Mas esses protocolos nem sempre vão servir para mulheres como Conceição Evaristo, uma das autoras que está merecidamente na lista da Fuvest. E por isso ela não deve ser considerada uma 'Machado de Assis de saias', isso a diminui, ela tem seu próprio jeito de escrever, e precisamos ainda entender e definir o melhor jeito de ler Conceição – ela bem que tem tentado nos ensinar, pois que é, além de uma grande escritora de literatura, uma grande teórica também".
Além disso, a lista traz uma grande oportunidade: "Uma lista de escritoras mulheres que contemple pessoas negras, indígenas, trans, donas de casa, revolucionárias, entre tantas possibilidades de existência para as mulheres, é uma oportunidade para que as escolas, os professores e os alunos não apenas leiam mulheres, mas aprendam outras formas de ler o mundo. Porque é isso que ler mulheres nos oferece: vivências que nunca foram nomeadas, descritas, estetizadas, marcadas com verbo, vírgula e ponto – maternidade, alimentação, guerra, estupro, tanta coisa que não conhecemos, uma infinidade de sentimentos de poderemos gozar, todos nós, ampliando a experiência de sermos gente."
Concluo a coluna com a fala final da entrevista concedida pela Tarsilla: "Encerro com uma citação da escritora Rosa Montero: se os homens tivessem regras (menstruação), a literatura universal estaria cheia de metáforas de 'sangue', diz ela no livro A louca da casa. Acho que, com isso, não precisa de muito esforço de imaginação para entender por que essa lista causa tanto incômodo. Tirar a primazia da experiência masculina do centro da produção de conhecimento é sugerir que formas alternativas de vida são possíveis. Ninguém quer abrir mão do privilégio de poder dizer como viver, nem os mais generosos professores."
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1.
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.