Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura
21 de novembro de 2019No início de novembro, três dias após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sair da prisão e fazer discursoscríticos ao governo, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: "Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada", argumentando que "alguns" acham que as falas do petista poderiam ser enquadradas na norma.
Bolsonaro se referia a uma lei decretada na ditadura militar que pune com prisão condutas com componente político, como fazer propaganda de processos violentos para alterar a ordem social, incitar a subversão da ordem política ou difamar o presidente da República.
A fala se aproxima de outras declarações recentes do presidente que ameaçam usar a força contra opositores ou na hipótese de protestos. No final de outubro, Bolsonaro definiu as manifestações que ocorriam no Chile como "atos terroristas" e disse que as Forças Armadas brasileiras deveriam estar "preparadas" para manter a lei a ordem caso processos semelhantes ocorressem no país.
A Lei de Segurança Nacional (LSN) era uma norma utilizada na ditadura (1964-1985) para enquadrar opositores e tratar divergências políticas como crime. Em 1983, quando o regime militar já caminhava para o fim, essa lei ganhou uma nova versão, mas seguiu tratando condutas amplas como crime, que poderiam ser usadas contra adversários do governo.
Desuso e reabilitação no período democrático
Após a promulgação da Constituição de 1988, que garante o pluralismo político e busca acomodar as divergências de opinião dentro do espaço democrático, a LSN entrou em desuso, segundo Janaína Penalva, professora de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB).
"Havia uma sensação de que essa lei tinha caído por si só, pois era usada para reprimir manifestações políticas, e que nem fazia sentido entrar com uma ação para que o Supremo declarasse sua inconstitucionalidade", diz.
Contudo, cerca de uma década depois, passado o calor dos debates sobre a redemocratização, a LSN voltou a aparecer em indiciamentos e ações penais contra movimentos sociais, especialmente ligados à reforma agrária e de esquerda, segundo Penalva.
Os primeiros alvos célebres da norma no período democrático foram integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), indiciados em 2000 com base na Lei de Segurança Nacional após invadirem prédios públicos. Seis anos depois, um coordenador do movimento, João Pedro Stédile, também foi denunciado com base na norma, por supostamente ter coordenado um ato que destruiu mudas de eucalipto da Aracruz Celulose.
Em 2012, policiais militares que se engajaram em uma greve na Bahia foram enquadrados na lei, e em 2013 um casal que participava de um protesto no centro de São Paulo também foi preso e indiciado com base na norma, acusados de provocar danos a uma viatura da polícia.
Esses casos continuam a ocorrer. De 2014 a 2018, pelo menos 156 pessoas foram processadas com base nessa lei em todo o país, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado pelo portal UOL.
Um exemplo recente é o de Adélio Bispo, que esfaqueou Bolsonaro em setembro de 2018 durante ato de campanha em Juiz de Fora (MG) e foi indiciado por um crime estipulado na LSN, o de cometer atentado por inconformismo político. Ao final do processo, ele foi absolvido por ter transtorno mental e internado compulsoriamente.
Tentativas de revogar a lei falharam
Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), afirma que a Lei de Segurança Nacional tem conteúdo "autoritário" e que alguns de seus trechos violam a liberdade de manifestação do pensamento. "Ela prega uma situação que não é típica da convivência democrática", diz.
Para ele, no caso dos discursos de Lula aos quais Bolsonaro se referia, essa lei "jamais poderia ser aplicada" devido às garantias da Constituição. "É uma especificidade brasileira, muitos comandos legais ficam existentes porque não sofrem revogação expressa até o Supremo ser provocado. Mas é uma lei tão absurda que poderia ser revogada sumariamente", afirma.
Diversas iniciativas para revogar a LSN foram encaminhadas ao Congresso, sem sucesso. Em 1991, o então deputado Hélio Bicudo (1922-2018), então filiado ao PT, propôs um projeto de lei para revogar a norma e incluir, no Código Penal, crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Em 2002, último ano da gestão Fernando Henrique Cardoso, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, também enviou uma proposta ao Congresso para revogar a norma. Em sua justificativa, ele defendeu a necessidade de abandonar o uso da terminologia "segurança nacional", típica da ditadura.
Em 2012, uma comissão de juristas criada pelo Senado para elaborar uma proposta de reforma do Código Penal sugeriu a revogação da Lei de Segurança Nacional, e em abril de 2014 entidades da sociedade civil pressionaram o Palácio do Planalto, então presidido por Dilma Rousseff, a rever a lei, mas o governo decidiu não se envolver diretamente no tema.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014, também recomendou revogar a norma, que segundo o colegiado refletia "as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985".
Em 2017, a Procuradoria-Geral da República foi provocada a mover uma ação no Supremo Tribunal Federal para que a Corte declarasse a inconstitucionalidade da lei, mas o órgão decidiu não agir nesse sentido.
Segundo a professora Penalva, da UnB, a permanência da norma no ordenamento jurídico e a referência recente feita por Bolsonaro "é fruto de uma aberturapara um discurso autoritário, como se estivéssemos usando sentidos simbólicos da ditadura. É a ausência de uma justiça de transição adequada nos rondando", diz.
A discussão no Supremo
Levantamento realizado em 2018 por Laura Mastroianni Kirsztajn, na Sociedade Brasileira de Direito Público, analisouos 29 acórdãos do Supremo que até aquele momento que se referiam à Lei de Segurança Nacional. A pesquisa concluiu que, em nenhum deles, o conjunto da Corte discutiu em abstrato a constitucionalidade da norma. Os processos tratavam de casos individuais, e ministros fizeram apenas observações pontuais sobre a validade da lei.
Em 2016, ao julgar um dos casos, o ministro Luís Roberto Barroso, que participou da formulação da proposta de revogação da norma apresentada em 2002 por Miguel Reale Júnior, afirmou: "Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira".
A posição dos membros da Corte sobre a validade da norma, porém, não é unânime. Em setembro, o ministro Alexandre de Moraes determinou busca e apreensão em endereços do ex-procurador-geral de Justiça, Rodrigo Janot, após ele relatar em entrevista ter ido ao Supremo armado com a intenção de matar o ministro Gilmar Mendes. Em sua ordem, Moraes citou como justificativa um artigo da Lei de Segurança Nacional.
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