Juninho Pernambucano: "Neymar esquece que foi pobre"
29 de outubro de 2022Juninho Pernambucano é um caso raro no meio do futebol. Nos últimos anos, o ex-jogador do Lyon, Vasco da Gama e da Seleção Brasileira tem utilizado as redes sociais para defender suas posições políticas, com um viés de esquerda.
Nesta eleição, Juninho estrelou vídeos da campanha do ex-presidente Lula (PT). Em um deles, interpretou um árbitro de vídeo (VAR) para explicar que o candidato não tem condenações judiciais, em contraponto às decisões do ex-juiz Sergio Moro.
Em entrevista à DW Brasil, o ex-jogador falou pela primeira vez à imprensa sobre a eleição deste ano. Ele explica que seu processo de politização começou no final de sua carreira, com os preparativos para a Copa do Mundo no Brasil. Crítico da gestão petista na ocasião, Juninho se diz arrependido.
"A linha de largada não pode ser tão injusta no Brasil. É disso que a elite também tem medo”, afirma. "Antes de tudo, tem que haver dignidade humana”.
Com a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao poder, em 2018, Juninho passou a se manifestar com maior frequência nas redes. O ex-jogador se diz indignado com as falas preconceituosas do presidente contra o povo nordestino.
"A revolta está dentro de mim há muito tempo. Tendo um presidente como este, é impossível não ter esse sentimento. Foram centenas as vezes em que Bolsonaro abriu a boca com preconceito, como se ele próprio tivesse um mínimo de inteligência”, dispara.
A postura combativa incomodou o bolsonarismo. Em primeira mão, Juninho conta que o senador Flávio Bolsonaro (PL) foi à sua casa no Rio de Janeiro para levar um livro sobre o presidente, quando o ex-jogador e a família estavam fora do Brasil.
"Eu joguei o livro fora assim que cheguei. Achei uma ousadia do Flávio Bolsonaro. Como ele sabia onde eu morava? Isso confirmou o que eu pensava do bolsonarismo”, diz.
Ao se posicionar ao lado de Lula na eleição, o ex-jogador se contrapõe a Neymar, maior jogador brasileiro da atualidade. O camisa 10 da Seleção Brasileira e do PSG manifestou apoio a Jair Bolsonaro ainda no primeiro turno. A uma semana do pleito decisivo, disse em uma live com o presidente que irá dedicar a ele seu primeiro gol na Copa do Catar.
"Eu acho que o Neymar pensa assim: eu não fiz mal a ninguém e cheguei aonde cheguei por causa do meu talento, do meu trabalho. Ele tem direito de pensar dessa forma, mas ele se esquece do principal: que ele foi pobre”, comenta Juninho.
"A partir do momento que você passa a viver no meio da elite, eles dominam teu pensamento”, afirma.
Para Juninho Pernambucano, a postura do craque da seleção reflete uma alienação no meio do futebol, que também se observa em outras profissões.
"A gente só viveu naquele meio, com as pessoas em nossa volta dizendo para a gente se ocupar de jogar. Seu cérebro fica só naquilo, a gente só entende de futebol. É igual médico no Brasil. Pouquíssimos são capazes de falar de política”, reflete.
DW: Você se tornou um caso raro no meio do futebol, ao defender posições políticas abertamente. Nesta eleição, você apoiou Lula e gravou vídeos para a campanha de televisão do petista. O que moveu essa decisão?
Juninho Pernambucano: Eu tomei um lado, sou do lado humano. Eu sempre admirei Lula. Sou sincero em dizer que me revolto por ter acreditado na Lava Jato, no início, pela grande mídia. Assim como o Felipe Neto fez, eu quero pedir desculpas a Dilma se um dia tiver a oportunidade. Eu só curti um post contra ela, mas acho que eu estava errado. Aceitei gravar vídeos para a campanha porque entendi que era como eu podia colaborar.
Na minha casa, não me falta nada. As minhas filhas têm boa educação, estudaram em boas escolas e universidades. O que me custa ajudar alguém que está necessitado? É por isso, pelo lado humano mesmo. Sendo uma pessoa pública, tendo tantas pessoas que me seguem, eu me senti na obrigação. Tem pessoas que te seguem e querem te ouvir. Como eu podia dizer "não” em uma hora dessas? Foi por prazer mesmo, para tentar ajudar de alguma forma.
Além do apoio a Lula, você tem defendido diversas pautas ligadas à esquerda. Como você se identificou com esse campo ideológico?
A linha de largada não pode ser tão injusta no Brasil. É disso que a elite também tem medo. Se der oportunidade para muita gente, essas pessoas podem se formar melhor do que eles, que tiveram oportunidade. Por vezes, abrem a boca para dizer que não tem que dar Bolsa Família, mas sim educação. Como você educa um ser humano que não tem dignidade, que não se alimenta? Antes de tudo, tem que haver dignidade humana no Brasil.
Bolsonaro falou que Lula estava cercado por traficantes no Complexo do Alemão. Na cabeça dele, só quem mora ali é bandido. Quando criticamos a forma como são feitas as operações policiais nas favelas, dizem que a gente é a favor do tráfico. Não, sou a favor de combater o tráfico na fronteira. Depois que a droga chegou, você quer entrar na comunidade para trocar tiro e matar crianças que não têm nada a ver com isso?
O rico critica quando o pobre fica feliz porque comprou um TV nova, ou porque sonha em ter um ar condicionado, já que dorme sob um forte calor no verão. O rico acha que isso não é nada, porque ele tem sobrando. Quando o Lula fala que vai ter picanha e cerveja, é porque o rico no final de semana tem várias opções de lazer. O pobre, se tiver condições de comprar a cervejinha e a picanha dele, vai ter um final de semana melhor. Todo ser humano tem sonhos e desejos.
Você sofreu algum tipo de represália por seus posicionamentos?
Quando ficou clara a maneira como o bolsonarismo pensa, com essa falta de respeito ao próximo e todo aquele discurso de homofobia do Bolsonaro, eu quis me posicionar a partir dali e mostrar que não estava interessado em quantidade de seguidores. Falei que, se você pensa igual ao Bolsonaro, não precisa me seguir.
Eu estava fora do Brasil e, para a minha surpresa, alguns dias depois, a pessoa que mora comigo nos telefonou, dizendo que o [senador e filho do presidente] Flávio Bolsonaro esteve lá. Ele disse que veio trazer um livro para eu saber quem é o pai dele de verdade. Eu joguei o livro fora assim que cheguei. Achei uma ousadia do Flávio Bolsonaro. Como ele sabia onde eu morava? Isso confirmou o que eu pensava do bolsonarismo.
Após o resultado do primeiro turno da eleição, o presidente Bolsonaro atribui o sucesso de Lula no Nordeste ao analfabetismo na região. O que você pensa dessa declaração?
A revolta está dentro de mim há muito tempo. Tendo um presidente como este, é impossível não ter esse sentimento. Foram centenas as vezes em que Bolsonaro abriu a boca com preconceito, como se ele próprio tivesse um mínimo de inteligência. Bolsonaro nunca seria presidente se não fosse o golpe.
Se ele tivesse o mínimo de inteligência, tinha feito um governo para todos. Pelo menos, o discurso teria sido diferente, e ele poderia estar na frente hoje, talvez com ajuda da grande imprensa. Mas ele é tão ignorante que não vai conseguir.
Quando eu escuto isso, eu penso nas pessoas que votam nele. Como o nordestino é capaz de votar nessa pessoa dessas depois de ter dito isso? Às vezes, é a falta de reconhecimento de classe. É o cara de classe média que tem vergonha de dizer que é pobre. Assim como eu, como muitos ele também não tem formação política. Ele nega de onde veio, ele tem vergonha. É igual a jogador que apoia Bolsonaro. Todos nós fomos pobres.
Como você reagiu à decisão do Neymar de apoiar Bolsonaro na eleição?
Eu paro para pensar no que aconteceu comigo para entender por que o jogador, ou ex-jogador em boa condição financeira apoia Bolsonaro. Quem é pobre e passa a ter uma vida melhor, não quer voltar a ser pobre. Quando você começa a jogar em um futebol de alto nível, passa a fazer melhores contratos, a ter mais dinheiro, sua vida muda.
A gente vai morar em lugares melhores, porque a gente quer, como todo ser-humano, ter uma vida melhor. A partir daí, você faz novas amizades e conhece pessoas de outra classe, que só te aceitam por você ter uma certa fama. No fundo, elas te consideram "um merda” e pobre do mesmo jeito, ainda que você tenha mudado de vida.
No Brasil, em especial, a vida se torna mais fácil ainda. Se você precisa marcar um médico, alguém te passa na frente porque conhece fulano. Alguém sempre irá solucionar qualquer problema seu, seja jurídico ou pessoal. Você passa a ter um glamour, a conhecer artistas. Tudo isso faz com que o jogador comece a mudar um pouco o seu pensamento. Quando você começa a se aproximar da elite e eles te aceitam, dizem o seguinte para nós: você não conseguiu? Então, o outro tem que conseguir. Não é assim, nós somos exceções. É claro que a gente tem mérito, passou por muita situação difícil para chegar até aqui.
A luta é injusta, mas eles colocam isso na nossa cabeça. Eu acho que o Neymar pensa assim: "eu não fiz mal a ninguém e cheguei aonde cheguei por causa do meu talento, do meu trabalho”. Ele tem direito de pensar dessa forma, mas ele se esquece do principal: que ele foi pobre. Ele esquece tudo o que ele passou e quantos amigos ficaram para trás. Não porque não eram bons, mas porque não receberam o tipo de apoio que ele recebeu. A partir do momento que você passa a viver no meio da elite, eles dominam teu pensamento.
Por que se posicionar ainda é tão incomum no meio do futebol?
A gente só viveu naquele meio, com as pessoas em nossa volta dizendo para a gente se ocupar de jogar. Seu cérebro fica só naquilo, a gente só entende de futebol. É igual médico no Brasil. Pouquíssimos são capazes de falar de política. A maioria dos médicos apoia o Bolsonaro. Às vezes, o cara é um grande cirurgião, mas é um zero humanamente, um zero para entender de sociedade. Isso acontece em todas as classes.
No meio do futebol, tem ainda uma particularidade. Existem pastores que se aproximam dos jogadores, frequentam a concentração, e cumprem um papel que o treinador não faz, que o Estado não faz para o pobre. Ele dá o conforto psicológico. O jogador é um ser humano. Não é porque o cara ganha R$200 mil por mês que ele não sente pressão. O que o pastor faz? Ele abraça, faz o trabalho psicológico. A minha formação não é evangélica, mas eu acredito em Deus e respeito todas as religiões igualmente.
A partir do momento que um jovem cheio de pressão e dúvidas recebe aquele acolhimento, através da Bíblia, o pastor ganhou o atleta e a família dele. O empresário fica junto, porque não quer perder aquele atleta. A maioria dos jogadores bolsonaristas fervorosos que conheço estão sob influência de pastores. Esse apoio não começa na política, mas termina com a política.
O Richarlison, atacante da seleção, chama atenção pelos posicionamentos em debates sociais importantes, como o racismo. Você sente uma mudança na nova geração de atletas?
O Richarlison é um cara muito humano, assim como o Vinicius Jr. São atletas contestadores, que gostam de saber o porquê. O Richarlison já se colocou à esquerda, ele não esquece de onde veio. Eu admiro demais o Richarlison, tenho muito respeito pela pessoa e o considero um grande jogador, peça fundamental na seleção por sua versatilidade no ataque. Casos assim dão esperança, eu fico feliz. Demora, mas muda.
A saúde mental do atleta é muito abalada durante a carreira. Ele precisa de acompanhamentos de profissionais da psicologia que entendam o esporte. O europeu não cai nessa, porque ele teve uma formação melhor que a nossa. Com 17 anos, eu fui fazer um teste e não tinha nem chuteira. Qual europeu passa por isso? Eles são formados de uma maneira mais democrática.
A nossa formação se deu naquele limite entre conseguir e não conseguir, uma pressão incrível. Quando eu era mais jovem e ia dar uma entrevista, tinha que pensar no podia falar. Às vezes, você tinha que falar uma coisa para agradar, mesmo que não fosse a favor daquilo. Era assim antigamente. O futebol também me formou.
Talvez, um dia seja natural que o atleta possa se posicionar com liberdade. Pelo menos, que ele possa pensar: tudo aquilo que eu passei foi tão ruim, que eu não posso torcer para ninguém passar por aquilo. A gente luta pelo básico, para que as pessoas tenham uma linha de largada mais justa.