Os etnoletos
16 de janeiro de 2008Nas áreas urbanas multiculturais da Alemanha, está se desenvolvendo uma nova variante do idioma alemão, com seu próprio ritmo e gramática. O etnoleto é falado por jovens imigrantes de várias origens étnicas, bem como por alemães da mesma faixa etária.
Os lingüistas consideram infundado o temor de que esta língua franca coloquial venha a ameaçar a língua alemã padrão. Mas representações distorcidas na mídia podem servir para simplesmente reforçar os estereótipos dos migrantes no país.
A cultura popular geralmente ridiculariza essa fala, enquanto a mídia freqüentemente a descreve como um problema social e uma ameaça ao alemão padrão.
Língua dissociada
Sarmad Ahmad (20), de origem iraquiana, só conheceu esta nova variante do alemão ao se mudar com os pais para Wedding, um bairro de Berlim com numerosa população de imigrantes. Ele imigrou para a Alemanha há nove anos e durante os primeiros meses freqüentou um curso intensivo de alemão.
Sarmad muda de um registro para o outro com grande facilidade. "Minha língua se partiu quando comecei a me misturar com os adolescentes deste bairro. Sei falar tanto de um jeito como do outro. É separado da outra língua. É como se fosse nosso. Alemães que cresceram nesta área também falam assim", afirmou ele.
"Nesse jeito de falar, há coisas que estão ligadas à nossa língua materna. Em árabe, a gente falaria só 'vir', por exemplo. Não há terminações diferentes para os verbos como no alemão padrão. Esse tipo de coisa se infiltra automaticamente", acrescentou Sarmad.
Gramática simplificada com novas construções
Nos bairros centrais de Berlim, não é incomum ouvir adolescentes conversando em "sua" língua, num tom duro e acelerado. Mas isso não se restringe à capital. A professora Heike Wiese afirma que este fenômeno vem sendo observado em diversas outras cidades alemãs, de Regensburg a Hamburgo.
Essa variante do alemão se caracteriza pela omissão de partículas e preposições em determinados contextos e por uma certa "economia gramatical", segundo descreve Wiese. "Por exemplo, em vez de dizer Ich gehe in die Schule (Vou à escola), eles diriam Isch geh Schule (Vou escola), ou Isch bin Görlitzer Park (Estou Görlitzer Park) em vez de Ich bin im Görlitzer Park (Estou no Görlitzer Park)," explica a lingüista da Universidade de Potsdam.
O etnoleto também é sortido de palavras árabes ou turcas, como yalla ("vamos", em árabe), wallah (uma forma comprimida da expressão "por Alá", usada no sentido de "realmente"). Ou lan, forma abreviada do termo turco ulan, usada no sentido de "o cara" ou "o tipo".
Fenômenos semelhantes também podem ser observados em outras partes da Europa, como na Suécia, Dinamarca e Holanda, sobretudo em áreas de grande concentração de imigrantes. Segundo Inken Keim, professora da Universidade de Mannheim e pesquisadora do Instituto de Língua Alemã, esses etnoletos europeus parecem até ter alguns elementos em comum, apesar de se desenvolverem em línguas diferentes.
A pesquisa acadêmica nessa área ainda é incipiente, tanto na Alemanha como no exterior. "Há um certo ritmo comum. Talvez tenha a ver com o gosto musical. Mas isso ainda está completamente em aberto no momento", afirma Keim.
Sinal de marginalização?
O que chamou a atenção da classe média culta para esse fenômeno foi a literatura, em meados da década de 1990. O livro Kanak Sprak, do escritor de ascendência turca Feridun Zaimoglu contém 24 "transcrições" de conversas com meninos alemães de origem turca.
Zaimoglu descreve o etnoleto como um "código underground", uma expressão da marginalização por parte da sociedade mainstream alemã. Kanak é o termo pejorativo para turcos e outro imigrantes do Sul da Europa, do Oriente Médio e do Norte da África.
Durante os últimos anos, essa variante do alemão ganhou grande destaque na mídia, tendo sido descoberta inclusive pelos comediantes. Diversos filmes, como Kebab Connection (1995), de Anno Paul, e Süperseks (1994), de Torsten Wacker, também abordam o assunto.
Discriminação na cultura popular e nos noticiários
Jannis Androutsopoulos leciona Sociolingüística e Discurso da Mídia no Departamento de Educação do King's College London. Ele investiga as distorções na representação de estilos étnicos da cultura popular alemã e no discurso público, bem como seu impacto na sociedade alemã.
A comédia tende a exagerar e até mesmo inventar características lingüísticas para provocar o riso, geralmente insinuando que os falantes deste tipo de alemão têm formação precária e são mal-educados.
De acordo com Androutsopoulos, essa tendência de estereotipar também pode ser observada em filmes, inclusive naqueles que se propõem a celebrar a diversidade cultural. "Há, por exemplo, filmes em que uma pessoa com background de imigrante, agressiva e evidentemente sem formação, certamente vai falar um alemão étnico, enquanto os bonzinhos que também tenham algum traço étnico tendem a falar um alemão muito mais próximo do padrão."
Analogamente, as reportagens propagadas pela mídia tendem a associar os registros lingüísticos de minorias étnicas a certas categorias ou identidades socialmente estigmatizadas, perpetuando assim os estereótipos. "Se não for alemão padrão, pode ter certeza de que está ligado ao gueto. É algo problemático, um indício de desvio da norma, e algo que vai impedir a pessoa de progredir na vida", acrescentou.
Androutsopoulos acredita que o etnoleto deveria ser considerado de forma muito mais positiva. "Quanto mais gente dominar diferentes registros da sua língua, tanto melhor: esta é a realidade lingüística. É simplesmente mais um estrato no repertório lingüístico das pessoas. Entre os jovens, há quem domine perfeitamente o alemão padrão e também um registro étnico da língua, como se fosse um dialeto regional."
Discriminação da língua e seus falantes por parte da mídia
A tendência da cultura popular de ridicularizar o registro etnicamente marcado do alemão não deixa de ser notada por Sarmad Ahmad. "Não tem nada a ver com integração. É só para gozar da gente." Por outro lado, ele também reconhece que algumas pessoas do seu grupo só sabem falar o etnoleto. "Muitos desses jovens vivem aqui e não vêem muito mais do que Neukölln ou Wedding. Eles não têm oportunidade de se desenvolver", acrescentou ele.
Segundo aponta Heike Wiese, tal não representa uma ameaça à língua alemã, mas um problema para os jovens em questão e para a sociedade alemã como um todo. "Para os jovens e para a sociedade que os perde, porque eles não podem participar dela e têm menos chances profissionais. É um problema imenso", ressalta a professora.
É difícil prever o quão duradouro será o fenômeno. Wiese acredita que a maioria dos registros de língua falados por adolescentes vai se extinguir com rapidez. Inken Keim, por sua vez, crê que esses etnoletos possam se estabelecer, mas só se as minorias étnicas permanecerem por mais de 30 anos em áreas com uma grande concentração de falantes não-nativos.
No momento, ela considera improvável a penetração dessas características na língua alemã padrão, sobretudo por causa das conotações negativas sugeridas, por exemplo, pelo idioma turco na Alemanha, em comparação com o status mais elevado do inglês.