1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Ida de Lula à China sela reaproximação pragmática

15 de abril de 2023

Viagem focou em acordos comerciais e fortalecimento de relações bilaterais. Especialistas avaliam como acertada postura de Lula de evitar temas polêmicos.

https://p.dw.com/p/4Q7zK
Lula caminha ao lado de Xi Jinping durante cerimônia de boas vindas
Lula foi recebido pelo presidente Xi Jinping, em PequimFoto: Kyodo/IMAGO

A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China selou uma reaproximação em termos mais amistosos, porém pragmáticos, do Brasil com seu parceiro comercial mais importante.

Após quatro anos turbulentos sob Jair Bolsonaro, Lula tenta reposicionar o país no cenário internacional e aposta, para isso, numa parceria estratégica com o gigante asiático – com quem mantém um fluxo comercial da ordem de 150 bilhões de dólares, com saldo positivo para o Brasil.

Em Pequim, Lula deixou claro qual será a tônica da política externa brasileira, com críticas à governança global, à hegemonia do dólar no comércio mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). "Queremos elevar o patamar da parceria estratégica entre nossos países, ampliar fluxos de comércio e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial", afirmou Lula em cerimônia nesta sexta-feira (14/04) na capital chinesa.

Esse anseio, ao qual o coordenador do Grupo de Estudos sobre Ásia da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Uehara, se refere como demanda por "democratização das relações internacionais", não é novo nem exclusividade do Brasil.

Para ele e outros especialistas da área de relações internacionais e comércio exterior consultados pela DW, se durante os governos Lula 1 e 2 a pretensão multilateralista do petista parecia um horizonte concretizável, hoje, no cenário atual, ele está mais distante.

"Nesse momento ainda é mais wishful thinking", avalia Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro (FGV-Rio).

A conjuntura naquela época era outra, lembra Paz, com uma China crescendo em um ritmo de dois dígitos ao ano, um Brasil festejado internacionalmente e uma Rússia apaziguada. Foi a época em que o Brics, grupo de países integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e que concentra um quarto do PIB mundial, emergiu como contrapeso a outros atores geopolíticos. Até que vieram as crises, agravadas por uma pandemia e pela invasão da Ucrânia.

"A perspectiva dos próximos cinco anos é de baixo crescimento mundial. Vai ser mais difícil se destacar nesse contexto", pondera Paz. "O próprio Brasil tem muito o que fazer internamente para conseguir se projetar externamente. Estamos muito fragilizados política e economicamente."

Assinatura de diversos acordos

Durante a viagem, Lula e o presidente chinês, Xi Jinping, assinaram 15 acordos comerciais e de parceria ligadas a setores como o aeroespacial, pesquisa e inovação e economia digital. Um deles é voltado ao desenvolvimento do CBERS-6, satélite que permite o monitoramento de biomas como a Floresta Amazônica, mesmo sob nuvens.

Outro, anunciado com destaque pelo governo petista, tem como foco o combate à fome. Para Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), o gesto confere peso extra às relações bilaterais ao incluir novos atores e demandas da sociedade civil além dos tradicionalmente representados em viagens do tipo, como o agronegócio.

"É uma tentativa de mostrar que você pode ter algum tipo de cooperação tecnológica na área de agropecuária que não seja simplesmente extrativista", avalia Brites. Como essa cooperação acontecerá na prática, contudo, ainda está incerto. "Cabe ao Brasil dar o tom, dizer que precisa incluir outros setores para aumentar a capacidade do brasileiro de botar alimento na mesa. Para a China está confortável só importar soja", afirma.

Transações em moedas locais em vez de dólar

Outro acordo, assinado antes da viagem, permite a realização de transações comerciais entre Brasil e China em reais e yuan, em vez de dólares. "A grande vantagem do comércio em moeda local é a redução de custos. Mas vai ficar a critério dos exportadores e importadores", explica Tulio Cariello, diretor de pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).

Na quinta-feira, Lula defendeu que os países possam exportar em suas próprias moedas. "Precisamos ter uma moeda que transforme os países numa situação um pouco mais tranquila. Porque hoje um país precisa correr atrás de dólar para poder exportar."

Tanto Cariello quanto Paz, da FGV-Rio, apoiam a medida e dizem que ela não desbancará o dólar.

Outros 20 acordos foram assinados pelo setor privado, principalmente nas áreas de sustentabilidade, tecnologia e infraestrutura.

Parceria pode ser deixa para retomar política industrial

Uehara, da USP, frisa a necessidade de o Brasil retomar uma política de industrialização. O setor, que segundo ele chegou a responder por 30% do PIB nacional nos anos 1980, representa hoje cerca de 10%.

"É a indústria que agrega valor e traz empresa para o país", afirma Uehara. Ele argumenta que as commodities, diferentemente de produtos industrializados, estão sujeitas a flutuações de preço em tempos de crise. "Por que exportamos café em grãos e importamos em cápsula? Temos muitos produtos que podemos transformar, agregar valor e exportar."

Paz, da FGV-Rio, faz coro e diz caber ao Brasil tomar providências para alavancar a indústria nacional. "Acho que depende mais do Brasil do que de qualquer outra coisa. A China pode ser uma ferramenta utilizada em uma estratégia para isso, mas não vejo nenhum debate sério no Congresso hoje, nenhum plano do governo concreto no sentido de mudar o perfil produtivo e de comércio exterior."

Críticas ao sistema financeiro internacional

Na China, Lula defendeu ainda o Banco do Brics como alternativa ao FMI, a quem acusou de "asfixiar" economias. "Não cabe a um banco ficar asfixiando as economias dos países como o FMI está fazendo agora na Argentina e como fizeram com o Brasil durante muito tempo", alegou. "Nenhum governante pode trabalhar com uma faca na garganta porque está devendo. "

Para Uehara, da USP, a declaração segue uma lógica rasa e o Banco do Brics não tem estatura para ocupar o lugar do FMI. "Não tem dinheiro suficiente para atender [a demanda] e não seria sustentável fornecer dinheiro independentemente de compromissos de saneamento das contas públicas."

Lula evitou temas espinhosos

Especialistas avaliam como acertada a postura do presidente brasileiro de evitar temas como a invasão da Ucrânia pela Rússia e violações de direitos humanos do regime chinês, bem como as tensões com Taiwan.

Para Brites, da FGV-SP, ao comentar esses assuntos o Brasil poderia acabar melindrando a China e os Estados Unidos, primeiro e segundo maiores parceiros comerciais, respectivamente – embora, de certa forma, já tenha havido algum incômodo com o questionamento da hegemonia do dólar e a visita de Lula à Huawei, empresa de tecnologia acusada pelos EUA de espionagem.

Alinhar-se a Estados Unidos ou China, segundo esses especialistas, seria um tiro no pé. "O Brasil tentou atrair investimento, criar canais financeiros mais fáceis, depender menos de escassez de dólar no mercado e tentar pegar dinheiro chinês pra combater o desmatamento", resume Paz, da FGV-Rio. "São coisas que são do interesse do Brasil. É pragmatismo."

Uehara, da USP, concorda: "O Brasil tem que buscar seus interesses, manter boas relações com os dois países e ter maior benefício, independente da percepção que os EUA possam ter."

Indagado sobre até que ponto a proximidade com a China possa virar um problema por divergências de valores – o gigante asiático é um regime autoritário, enquanto o Brasil fez da defesa da democracia e dos direitos humanos uma de suas trincheiras retóricas no enfrentamento da extrema-direita – Paz retruca com o exemplo dos Estados Unidos, que mantêm relação estreita com a Arábia Saudita e voltaram atrás nos embargos à Venezuela após a invasão da Ucrânia pela Rússia – uma decisão pragmática, segundo ele, para manter o abastecimento de petróleo no mercado americano.

"As pessoas querem impor ao Brasil uma posição moral que ninguém adota, na realidade", afirma Paz, citando parcerias da China com os Estados Unidos e potências europeias como Alemanha e França.

Para Paz, à exceção do aspecto comercial, o Brasil está longe de ter uma relação de dependência com os chineses. "São os únicos que têm condições de comprar exatamente o que a gente quer."

Brites, da FGV-SP, lembra o voto brasileiro na resolução das Nações Unidas que condenou a Rússia pela invasão da Ucrânia, em desacordo com a posição dos países dos Brics e alinhado aos Estados Unidos e às potências ocidentais.

Mas o limite da crítica, segundo Brites, termina onde começam os interesses. "O Brasil não tem condições de intervir nos assuntos internos de outros estados. A tendência é fugir desses temas quando for tratar com a China."

Ele diz ver risco de uma saia-justa maior para o Brasil caso a situação na Ucrânia ou em Taiwan piorem. "Tornaria a posição do Brasil mais frágil ao navegar entre esses dois mundos. É uma aposta da política externa. Sempre há um risco de desequilibrar a postura de neutralidade. Esse é o grande desafio."