Guerra na era digital: o que noticiar, o que ocultar?
22 de junho de 2023Vídeos diretamente das fronteiras: o tiro mortal, a luta filmada com uma câmera no capacete. Outro tiro, outro morto – e os espectadores recebem as imagens quase instantaneamente. Ao contrário de outras guerras, a na Ucrânia pode ser acompanhada no Twitter e outras plataformas, bem longe dos locais de combate e a partir do smartphone.
A invasão do país pela Rússia é "sem dúvida, o conflito mais amplamente documentado da história das imagens e da guerra", observou o fotojornalista Ron Haviv num painel de debates do Global Media Forum 2023(GMF) da DW. Uma pergunta que muitos se fazem é que papel ainda tem o jornalismo nesse contexto.
Pelo segundo ano em seguida, um dos focos do evento internacional foi a dificuldade de noticiar sobre a guerra em curso no Leste Europeu. No saguão do World Conference Center de Bonn, jornalistas compartilhavam entre si informações de seus canais da plataforma Telegram sobre o fronte no sul e leste da Ucrânia.
Entre elas, o vídeo de uma tropa ucraniana aparentemente atacando um posto russo, alvejando e matando um soldado inimigo após o outro nas trincheiras. Parecia um jogo de computador, e não a matança real de seres humanos. Não estava bem claro onde as imagens haviam sido feitas.
Para a profissional ucraniana Sevgil Musaieva, certo está que isso não é jornalismo: a editora-chefe do jornal online de Kiev Ukrainska Pravda não vê muito sentido em simplesmente assistir nas redes sociais a tais postagens da guerra, pois sem contexto, não há informação nem benefício para os espectadores: "A meta do jornalismo e de nossa profissão é fornecer contexto e descrever o que está realmente ocorrendo e quem são os responsáveis, e encontrar indícios."
Da mídia para a Justiça internacional
No melhor dos casos, os vídeos poderão se tornar provas passíveis de apreciação por uma jurisdição internacional. Esse foi o caso do trabalho do fotojornalista Haviv durante as guerras na ex-Iugoslávia.
Na Bósnia-Herzegovina, o americano documentou, entre outros episódios, a expulsão de bosníacos muçulmanos pelos sérvios – registros que mais tarde seriam submetidos ao Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.
Filtar a verdade na avalanche de mensagens de textos, fotos e vídeos, promovendo assim a relevância legal da atividade jornalística, é agora um componente central do noticiário sobre guerra e crises, comentou Haviv no painel do GMF Noticiário de guerra na era digital. O trabalho envolve conferir fragmentos de vídeos e tuítes, compará-los com testemunhos pessoais e organizar toda essa informação "para obter uma visão geral do que está acontecendo".
Nesse contexto, Musaieva evocou os primeiros meses da invasão da Ucrânia por Moscou: no segundo trimestre de 2022, propagaram-se via redes sociais informações de que a capital Kiev fora tomada, às vezes até por forças ucranianas. Para a jornalista, isso ilustra que não pode haver noticiário fiel aos fatos sem um exame sustentado das fontes, sem confrontar informações diferentes, e sem compreender e explicar o contexto.
Ela está também tentando frisar esse argumento nas discussões com encarregados de imprensa das Forças Armadas ucranianas. Pois o governo do presidente Volodimir Zelenski restringiu severamente o acesso da mídia às zonas de combate: desde o início da investida russa, em 24 de fevereiro de 2022, vigora lei marcial, também limitando a liberdade de imprensa.
Liberdade de informação x sigilo estratégico
Com o começo da atual contraofensiva ucraniana, as Forças Armadas nacionais distribuíram um vídeo meticulosamente produzido, em que soldados uniformizados pedem à população para manter o sigilo sobre as operações militares em curso. O gesto de colocar o indicador sobre os lábios simboliza o apelo.
O diretor do serviço secreto militar da Ucrânia, Kiril Budanov, igualmente divulgou um vídeo em que fica silencioso por 20 segundos, até que entra a legenda: "Planos adoram silêncio".
Por outro lado, em seus diálogos com os militares ucranianos, Musaieva tem enfatizado que o público tem o direito de saber "o que está realmente acontecendo": essa também seria uma forma de assegurar que não diminua o apoio da comunidade internacional ao país, afirma.
Recentemente o portal online do Ukrainska Pravda publicou imagens de canais de mídia social mostrando os sistemas de defesa Patriot, cujos autores originais haviam sido punidos por lei marcial. Musaieva encarregou analistas da Bellingcat e outras plataformas investigativas de verificarem se o vídeo poderia ter ajudado os russos a localizarem e destruírem as defesas antiaéreas.
O resultado foi: sim, divulgar o vídeo foi má ideia em termos da proteção à população ucraniana das bombas inimigas. Ou seja: o noticiário de guerra está se tornando ainda mais complexo na era digital, e por isso é preciso que esteja nas mãos de jornalistas profissionais.