Gospel music: uma tradição natalina alemã
20 de dezembro de 2005Desde novembro, eles começam a ocupar muros e postes. Em dezembro, já se proliferaram como cogumelos no bosque. E nos dias antecedendo o Natal, não há como ignorá-los: centenas cartazes anunciando inúmeros eventos de gospel, quer se trate de corais, shows ou concertos em igrejas, povoam as ruas da Alemanha.
Pode parecer estranho o fato de a música das igrejas negras norte-americanas encontrar interesse tão caloroso na Alemanha, país europeu onde menos se freqüenta a missa, e sem uma tradição própria de spirituals.
Porém os números são inequívocos: o site berlin-gospel-web.de registra 50 coros de gospel, apenas na área de Berlim; gospelszene.de anuncia 500 coros no país. Isso, embora Arjan Leuschner – aficionado do gênero e um dos responsáveis pelo site – calcule que os números reais são cinco vezes superiores.
Obrigado, Whoopi Goldberg...
Como foi que a nação de Bach, Beethoven e Wagner cedeu ao encanto de Queen Esther Marrow, Mahalia Jackson e dos Harlem Gospel Singers? Segundo musicólogos, a tendência se encaixa numa onda de interesse pela música negra em geral, após a Segunda Guerra Mundial. Com um empurrãozinho mais recente, de filmes como Os irmãos cara de pau (The Blues Brothers, 1980) e Mudança de hábito (Sister act, 1992).
Desde a década passada, cantores e regentes corais – grande parte dos quais, norte-americanos trabalhando no país – têm que se desdobrar para corresponder ao apetite insaciável por oficinas e concertos dedicados à black spiritual music.
Identificação por contraste
Adrienne Morgan Hammond fez carreira no gospel, embora tenha vindo para a Alemanha como artista de musical e cantora de jazz. Hoje, ela dirige três coros permanentes na área de Colônia e oferece 20 workshops por ano em igrejas por todo o país.
"Há um interesse enorme pela música gospel. Nunca me apresentei para menos de 400 pessoas", comenta a musicista originária da Califórnia, que cresceu cantando spirituals no coro de sua igreja.
"Fiquei bem espantada que os alemães gostassem dessa música. Não tem a menor relação com a cultura deles, mas indiretamente, sim. Eles não se permitem demonstrar emoções, e o gospel os atrai, por lhes permitir serem emocionais em público. E eles podem mostrar sua crença em Deus de modo totalmente diferente do que estão acostumados."
Religião para o coração
Leuschner, do site gospelszene.de, acrescenta: "Muitos jovens alemães têm vergonha de dizer: 'Creio em Deus'. Mas conseguem fazê-lo através da música, sobretudo por estarem cantando em inglês".
Uma das pioneiras da música negra na Alemanha é Angelika Rehaag, que mantém uma "academia de gospel" perto de Düsseldorf. Dez anos atrás, ela organizou um festival dedicado ao gênero e dirige sete corais de gospel.
Em sua opinião, a igreja tradicional – católica ou luterana, no caso da Alemanha – deixou um vácuo que o gospel veio preencher. "As pessoas não encontram um lar na Igreja, ela é muito filosófica e teológica, não tem nada para o coração. Mas a música gospel, sim", reflete a regente.
Continue lendo sobre as raízes do interesse, na terra de Bach, pela música sacra dos negros norte-americanos. >>>
Canto confiscado
Segundo Rehaag, após a Segunda Guerra, os alemães foram forçados a rejeitar suas canções tradicionais, "usurpadas" pelos nazistas e instrumentalizadas como vetores de propaganda. "Depois da guerra, aboliu-se o canto em conjunto nas escolas e jardins da infância. Hoje em dia, os corais são coisa para idosos ou crianças. Mas entre as pessoas de 30 a 50 anos de idade, há uma enorme demanda".
Para ela, o gospel é a melhor chance de a Igreja conquistar um público jovem: "Diversos coros jovens adotaram o nome de 'coro gospel', quer cantem gospel ou não. Talvez estejam apenas cantando spirituals. Isso atrai gente – que normalmente evitaria a igreja, mas 'gospel' soa interessante".
Gospel sim, Igreja não
Ansgar Puff, padre da igreja católica de São José, em Düsseldorf, onde Angelika Rehaag dirige um coro, vê a questão com mais ceticismo. O gospel pode aproximar as pessoas da religião, mas até o momento não há evidência de que esteja acrescendo o rol dos fiéis.
"Muitos começam a cantar gospel sem nem entender o que estão dizendo. Até que, em algum momento, têm que tomar consciência do texto, para que seja frutífero, e isso as leva a pensar sobre sua fé. Porém, o próximo passo seria que se filiassem à Igreja e não vejo que isso aconteça".
Note-se que, na Alemanha, os fiéis têm de se cadastrar como tal e pagar impostos regularmente, quer para a Igreja Católica, quer para a Luterana.
O caso de Christine Ehlert sugere que Puff pode ter razão. A terapeuta ocupacional de 42 anos rompeu com a Igreja há tempo, porém, faz dois anos, canta no coro de Morgan Hammond: "Não relaciono necessariamente meu amor por essa música com a Igreja. Certamente faz bem, é como remédio. Mas não tem que se referir ao amor de Deus".
Revolução pela música
A regente Adrienne Morgan Hammond acredita que a música fala por si: "Tento não martelar religião na cabeça dessas pessoas. Mas praticamente tudo o que cantamos traz o nome de Deus. Não preciso me levantar e pregar. Mesmo os que não acreditam são tocados, de algum modo".
E a californiana acrescenta: "Quando jovem, queria ser missionária. Agora me considero missionária na Alemanha. Estou tentando revolucionar a Igreja e trazer de volta os que se cansaram, ou de ter que ficar em silêncio total na igreja, ou de sofrer".