"Foi horrível anunciar a morte de Ayrton Senna"
1 de maio de 2024O dia 1º de maio de 1994 parecia ser um domingo de recomeço para Ayrton Senna. Depois de rodar no GP do Brasil, quando estava à caça da Benetton do alemão Michael Schumacher, Senna abandonou logo no início o GP do Pacífico, em Aida, no Japão, após sua Williams ser tocada na largada pela McLaren de Mika Hakkinen e pela Ferrari de Nicola Larini.
No GP de San Marino, em Ímola, na Itália, terceira etapa do Mundial de Fórmula 1, Senna fez novamente a pole e buscava a recuperação no campeonato em que ainda era favoritíssimo ao título. A Williams, sua nova equipe, havia dominado a F-1 nas duas temporadas anteriores. Em 1994, o regulamento baniu a eletrônica da categoria, grande trunfo da equipe que agora buscava um novo acerto para seus carros.
"O carro da Williams era difícil de guiar. Mas a projeção de resultados era boa, tanto que Damon Hill quase foi campeão. Nessa lógica, considerando que Senna era muito mais rápido do que Hill, é de se considerar que Senna ganharia o campeonato de 1994", diz o ex-correspondente internacional Raul Moreira.
A corrida em Ímola era a estreia internacional de Raul na F-1. Depois de cobrir o GP do Brasil e não ir à etapa de Aida, ele viajaria o mundo cobrindo a competição para um jornal e uma rádio. Além disso, sua coluna Leitura Rápida seria distribuída para vários veículos de imprensa com o patrocínio de uma grande empresa de alimentos.
"A gente teria um duelo ainda mais fantástico de Senna com Schumacher do que com Prost", supõe.
Tragédia ao vivo chocou o mundo
Na sexta-feira anterior a morte de Senna, Raul chegou ao autódromo Enzo e Dino Ferrari depois do grave acidente de Rubens Barrichello, que foi salvo após ser reanimado na pista pela equipe médica. No sábado, o austríaco Roland Ratzenberger morreu ao bater violentamente na curva Villeneuve.
Era a primeira vítima fatal na F-1 desde 1986, quando o italiano Elio de Angelis — ex-companheiro de Senna na Lotus — morreu em um teste da equipe Brabham. Em um fim de semana de GP, foi a primeira morte desde 1982, quando o carro do italiano Riccardo Paletti pegou fogo.
"A F-1 teve uma mudança radical com o fim da eletrônica. Mas no Brasil você não houve problema de confiabilidade, em Aida também não. De repente, tudo descambou em Ímola", conta Raul Moreira.
No domingo, logo na largada, um acidente envolvendo J.J. Letho e Pedro Lamy lançou pedaços dos carros e dois pneus nas arquibancadas, ferindo nove pessoas. O safety car entrou em ação até a sexta volta, enquanto os detritos eram retirados da pista.
Na sétima volta, aconteceu o momento que marcou para sempre a memória de milhões de fãs pelo mundo: a Williams de Senna passou reto na perigosa curva Tamburello e se chocou com a mureta a mais de 200 km/h.
"Foi um silêncio sepulcral", diz Raul sobre a reação dos jornalistas brasileiros na sala de imprensa. "O que causou perplexidade foi que Senna ficou imóvel".
A chegada da equipe médica e da ambulância, seguidas da remoção de Senna por helicóptero, evidenciaram a gravidade da situação. "Quando vimos a posição dos pés dele na maca, vimos colocarem pano, aí foi um pânico geral", lembra Raul.
Alguns jornalistas desceram até o padoque para buscar informações. Sem saber o que fazer, Raul viu que o jornalista Livio Oricchio resolveu ir ao hospital Maggiore, em Bolonha, para onde Senna acabara de ser levado, e lhe pediu uma carona. "Fomos os primeiros jornalistas brasileiros a chegar no hospital", conta.
O boletim médico já indicava a morte cerebral do piloto, tirando qualquer esperança de recuperação, embora seu coração ainda batesse. Jornalistas do mundo todo se revezavam no telefone público do hospital, numa época em que poucos tinham telefone celular.
Por uma fatalidade, era Raul quem estava ao telefone, falando ao vivo para uma rádio, quando a médica Maria Teresa Fiandri anunciou oficialmente a morte de Senna, notícia que ele foi o primeiro a transmitir. "Em um momento, houve um alvoroço no saguão do hospital, eu estava ao telefone e ouvi a médica falando", conta. "Foi horrível anunciar a morte dele".
Desnorteado, Raul só saiu do hospital à meia-noite, levado por uma equipe de jornalistas suíços que o deixaram no hotel. "Quando você acorda é que a ficha cai. Aí é muito difícil", lembra.
Amor e morte na curva Tamburello
A morte de Senna abreviou a aventura de Raul na F-1, que perdeu seus financiadores. Ele ficou um tempo na Itália até retornar para casa, em Salvador. Meses mais tarde, uma surpresa: recebeu uma encomenda do autódromo com os pertences que deixara no armário em Ímola, para onde não tinha mais voltado.
Em 1995, de volta à cobertura da F-1, Raul foi à fatídica curva Tamburello, numa peregrinação que marcava o primeiro ano da morte de Senna. Lá, conheceu sua futura esposa, a italiana Frida, com quem foi casado por cinco anos.
Por sua estreia internacional ter sido num trágico fim de semana, Raul foi apelidado de "Anjo Negro da Morte" pelos colegas de imprensa. "Depois das corridas, saía todo mundo pra jantar e Galvão Bueno pagava a conta pra todo mundo, ele era um sujeito generoso".
Num especial da Globo em 2014, Galvão contou que presenciou Senna dizer que queria uma bandeira da Áustria, pois venceria a prova e iria homenagear Ratzenberger. Mas o olhar perdido do brasileiro dentro dos boxes e sua expressão de pesar enquanto colocava a balaclava, já no grid de largada, eram bem diferentes do habitual.
A causa do acidente foi a quebra da barra de direção — que havia sido aumentada a pedido de Senna —, deixando o volante inerte justamente quando ele entrou na Tamburello. Com a força do impacto da batida, a barra de suspensão do pneu dianteiro direito se partiu e se voltou como uma lança contra o ponto mais vulnerável do capacete, na altura da viseira, perfurando a cabeça do piloto no lado direito.
Com perda de massa encefálica e fraturas no crânio, o ídolo brasileiro só não morreu na pista porque a equipe médica comandada por Sid Watkins fez uma traqueostomia ali mesmo para que ele conseguisse respirar.
Senna projetou boa imagem do Brasil
Dois dias após o GP do Brasil de 1994, Raul e vários jornalistas voltaram ao autódromo de Interlagos, em São Paulo, para um encontro com Ayrton Senna. O tricampeão os mostrou, em primeira mão, um carro da marca alemã Audi que ele começaria a importar para o Brasil. "Ele deixou a gente pilotar o carro, eu dei três voltas e rodei", diverte-se Raul. Em seguida, Senna embarcou para seus compromissos na F-1 e só voltou morto ao Brasil, no velório que comoveu o país.
Ayrton Senna iniciou sua carreira na F-1 em 1984, quando o Brasil ainda estava saindo da ditadura e não tinha uma boa imagem no mundo. Sua primeira vitória, no ano seguinte, foi no dia da morte do presidente Tancredo Neves. "Na época, a gente estava na pior. A gente tinha Sarney, não tinha eleição direta para presidente, tinha hiperinflação. Na Itália, o Brasil era conhecido como o país dos meninos de rua", contextualiza Raul.
Com grande talento, Senna conquistou rápido sucesso, se tornando tricampeão mundial de F-1, uma categoria já altamente globalizada por suas transmissões na televisão. "Ele projetou a imagem do Brasil internacionalmente. Senna foi o piloto que vestiu a roupa de herói nacional. Ele era um cara obcecado, ele vivia para aquilo. Ele era um sujeito com um padrão médio diferente dos outros pilotos, com uma personalidade muito particular", avalia.
"Esse herói sobreviveu. O sujeito Senna persiste trinta anos depois e ainda alimenta o imaginário das pessoas", conclui Raul Moreira.
Onze dias antes da última corrida, numa entrevista concedida no estádio Parc des Princes, em Paris — onde deu o pontapé inicial de uma partida da Seleção, sendo ovacionado pelo público francês e tendo sua entrada precedida por um minuto de silêncio em homenagem ao jogador Denner —, Senna foi perguntado sobre qual o seu maior desejo.
"Meu maior desejo é correr por muitos anos ainda, de uma forma competitiva, de uma forma saudável e, no dia que eu abandonar as competições, estar cheio de saúde ainda e poder levar uma vida bastante ativa, e quem sabe curtir um pouco mais a vida com a família", disse o inesquecível campeão das pistas, há trinta anos.