Diversidade brasileira
16 de fevereiro de 2010Neste ano em que completa seis décadas de existência, o Festival Internacional de Cinema de Berlim apresenta um total de nove filmes produzidos do Brasil ou realizados por cineastas nacionais. Eles se distribuem por uma ampla palheta de seções, desde a Berlinale Shorts até Play It Again...!, a retrospectiva selecionada pelo crítico e autor David Thomson.
Nenhuma dessas produções está incluída na mostra competitiva. Na realidade, após José Padilha haver arrebatado o Urso de Ouro em 2008, com Tropa de elite, seguido, no ano passado, pela peruana Claudia Llosa (La teta asustada), a presença latino-americana é relativamente modesta nesta 60ª edição do festival.
Juventude de Gláuber, Brasil da Central
Quarenta anos após sua realização, um clássico do Cinema Novo pode ser (re)visto no Fórum Internacional do Filme Jovem. Trata-se da seção mais "arriscada" da Berlinale, com um forte perfil político, reunindo películas de vanguarda e de cineastas ainda desconhecidos, experimentos, ensaios fílmicos e reportagens.
Em O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro, Gláuber Rocha (1939-1981) conta a saga de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros e fanáticos religiosos que mudou de campo, passando de capanga dos coronéis a paladino dos oprimidos. A lenda de São Jorge serve como metáfora para a luta contra o "dragão da maldade" da ditadura militar. Considerado "um ponto alto da arte de Gláuber", o filme de 1969 traz, entre outros, Maurício do Valle, Odete Lara e Othon Bastos.
Já posicionado por alguns na categoria cult, Central do Brasil, de Walter Salles consta da seção Retrospektive, lado a lado com Akira Kurosawa, Michelangelo Antonioni e Jean Renoir. Indicado para dois Oscars em 1998, o road movie entre a principal estação ferroviária carioca e o Nordeste do país recebeu no mesmo ano o prêmio máximo da Berlinale, assim como o Prêmio do Júri Ecumênico e o Urso de Prata para Fernanda Montenegro como melhor atriz.
Cuecas de presente e o salto da ponte
A biografia pessoal é ponto de partida para dois dos participantes brasileiros. Que repercussões tem o extermínio de 6 milhões de judeus, várias décadas atrás, na vida de uma criança da América do Sul? Em seu curta Avós, de 2009, com 12 minutos de duração, o diretor uruguaio Michael Wahrmann, neto de sobreviventes, procura fechar uma lacuna na elaboração do Holocausto: a da terceira geração. Pois é aos 10 anos de idade que seu protagonista Leo começa a compreender a relação entre as tatuagens nos braços de suas avós, os presentes que lhe dão – sempre meias e cuecas –, e o fato de ele ser assim, rechonchudo.
Enquanto o próprio Wahrmann ficou surpreso por seu curta ter sido classificado entre os infantis da Berlinale Shorts, Os famosos e os duendes da morte é apresentado na seção Generation. Existente desde 1978, ela se divide atualmente em duas categorias competitivas: Kplus e 14plus, para filmes infantis e juvenis, respectivamente.
A julgar pela reação entusiástica do público da estreia, o primeiro longa-metragem do paulista Esmir Filho tem ótimas chances. Partindo de um livro de Ismael Caneppele (também ator na película), ele registra o rito de passagem na vida de um adolescente do interior do Sul do Brasil. Para sobreviver, "Mr. Tambourine Man" (sua "personagem" na internet), interpretado por Henrique Larré, tem que romper a "gaiola" da comunidade de imigrantes alemães, em que os avós mal falam o português e da qual, para alguns, a única saída possível tem sido atirar-se da ponte sobre o rio.
Capoeira, periferia e o sexo dos outros
A mostra Panorama abre uma vista sobre as tendências do cinema de autor. Apresentando filmes de diretores consagrados lado a lado com primeiras produções e novas descobertas, os organizadores pretendem formar uma ponte entre visão artística e interesses comerciais.
Fucking different São Paulo foi desenvolvido com um orçamento mínimo, durante uma oficina de roteiro, no 16º Festival Mix Brasil, e reúne 11 realizadores em 12 segmentos. Enquanto as diretoras penetram o universo masculino gay, os homens observam o mundo das lésbicas. Os gêneros e temáticas são diversos: de minirreportagens – sobre os 32 anos de vida comum de um casal de mulheres, sobre soropositivos ou uma comunidade de cristãos homossexuais – a curtas de ficção, uma coreografia erótica e uma animação.
Trata-se do quarto filme da série Fucking different, produzida por Kristian Andersen, enfocando aspectos da vida homossexual em diversas metrópoles. Antes de São Paulo, os focos foram Berlim, Nova York e Tel Aviv.
Dentre os 18 selecionados para a subseção Panorama Special, dedicada a grandes produções independentes, encontram-se dois brasileiros. Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, mistura história, filme de ação e fantasia afro-religiosa, ao acompanhar a vida do capoeirista baiano Manoel Henrique Pereira, figura relevante na história da escravidão brasileira pós 1888. A trajetória de sucesso comercial da película no Brasil deve-se em boa parte aos efeitos especiais e aos paralelos visuais entre a luta-dança afro-brasileira e as mirabolantes coreografias dos filmes asiáticos de artes marciais.
Bróder trata da amizade de três rapazes da periferia de São Paulo (representados por Jonathan Haagensen, Silvio Guindane e Caio Blat), e de suas diferentes escolhas de vida. O baixo orçamento não impediu o diretor Jeferson De, fundador do grupo Dogma Feijoada, de recrutar para o elenco de seu primeiro longa estrelas como Cássia Kiss e Zezé Motta. Apesar de todo o potencial sociológico e antropológico da locação e do tema, o diretor, que afirma não fazer filmes achando que irão resolver problemas, optou por uma "ficção para emocionar".
Arte é lixo
Panorama Dokumente é a seção do festival voltada para o gênero documentário, com ênfase em temas sociais e na história viva. Coadjuvada pelo brasileiro João Jardim e por Karen Harley, a diretora inglesa Lucy Walker abordou em Waste Land a dinâmica de transformação social desencadeada por um projeto artístico no Rio de Janeiro.
O filme acompanha o encontro entre Vik Muniz, um dos artistas brasileiros de maior projeção internacional, e os catadores de materiais recicláveis no aterro de lixo de Jardim Gramacho, o maior do mundo. Partindo das primeiras– quase olfativamente chocantes – impressões de miséria material e humana, as imagens vão revelando uma luta diária pela sobrevivência e pela dignidade, pouco a pouco a massa dos catadores ganha rosto e uma história pessoal. Seguem-se a integração de alguns deles no projeto de Muniz, o vislumbre de possibilidades melhores de vida, e, por fim, algo que pareceria mero sonho de Cinderela, se não fosse realidade documental.
Presente à estreia na Berlinale, ao lado dos três diretores, esteve Sebastião Carlos dos Santos (Tião). Catador desde os 11 anos de idade, ele fundou e é presidente da Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMJG), inspirado por livros como O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, que encontrara no lixo.
Na mesma seção da Berlinale, outra brasileira, Júlia Bacha, dirige uma produção norte-americana que registra um capítulo atual do conflito no Oriente Médio. Em 2003, Israel anunciou a construção de uma cerca ou muro isolando o território palestino. Para realizar Budrus – nome de uma cidade da Cisjordânia cuja própria existência está ameaçada pela barreira – a cineasta de origem libanesa acompanhou durante cinco anos as iniciativas de protesto no local. Bacha foi corroteirista e editora do documentário premiado Control room, sobre a rede de mídia Al Jazeera.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer