Feliz Natal: o mundo está acabando
26 de dezembro de 2019Desde pelo menos o século 9º, paredes de pedra em templos nas ilhas de Maiorca, Sardenha e na Catalunha ecoam o Canto da Sibila a cada Natal. Não se sabe a autoria da melodia gregoriana, mas a letra do auto é atribuída a Sibila de Eritreia (séc. 6º a.C.), profetiza da mitologia greco-romana, traduzida do grego para o latim por Santo Agostinho.
Se as sibilas eram oráculos femininos pré-cristãos dadas a visões catastróficas, a profeta em questão não trata apenas do Juízo Final. Ela também prevê uma era de ouro da humanidade inaugurada pelo nascimento de uma criança, filha de mãe virgem, além de narrar o apocalipse em versos acrósticos que citam o nome de Jesus Cristo – daí sua apropriação pelo catolicismo.
Como a tradição medieval proibia que mulheres ocupassem altares fora do claustro, meninos sopranos, com uma espada erguida diante do rosto, cantam a mensagem feminina desde a Baixa Idade Média – rito que ainda é seguido em algumas igrejas, como o Santuário de Lluc. A maioria das igrejas hoje aceita versões com mulheres solando ou diante de grandes coros – e em 1990, a banda australiana Dead Can Dance gravou uma versão darkwave de The Song of the Sibyl.
A canção que ouvimos tem mais de 1.200 anos, e sua mensagem atravessou mais que o dobro disso. O que ela diz, em pequenas variações: que os fogos secarão fontes e rios, que reis e barões terão o mesmo destino dos despossuídos, que crianças irão chorar ainda no ventre de suas mães, que o mundo será engolido pela escuridão.
Em A Cidade de Deus (426 d.C.), Santo Agostinho reafirma o caráter de renovação cristã e o tom apocalíptico das palavras da Sibila de Eritreia num momento em que o Império Romano está em crise, sitiado pelos bárbaros e pelos anseios do seu próprio povo. Convertido em estado totalitário, cujo controle estava nas mãos de nobres cercados por uma burocracia militarizada e hipervigilante, o 1% do Império oprimia seus súditos – o que é exposto por Agostinho no seu balanço da história romana.
Em seu tempo, as profecias sibilinas falavam da queda de Troia. Lidas por Agostinho, indicaram o fim do Império Romano – e hoje podem perfeitamente falar do declínio do Império Americano e da fase tardia do capitalismo. Mas há algo hoje muito além de uma crise sistêmica ou da queda de um império: o Antropoceno. O capitalismo pode acabar com a vida dos humanos sobre a Terra, junto com ele.
O Apocalipse cantado a cada Natal no Canto da Sibila tem um tom reflexivo, sua melodia gregoriana e moçárabe nos faz enxergar esse fim do mundo com alguma distância – talvez um pouco no tempo de Deus, como descrito nas Confissões de Santo Agostinho: uma eternidade contida num eterno presente. E se há alguma calma zen em experimentar esse ponto de vista impossível, através de uma lente circular que nos oferece um panorama infinito do tempo, aqui há também outro tipo de presentificação.
A emergência climática, após 25 conferências sobre o aquecimento global, não recebeu ainda uma resposta adequada de países e corporações, que preferem investir em negacionismo e destruição. E as emissões de dióxido de carbono seguem em alta, assim como as previsões para o aquecimento global. Se as temperaturas continuarem subindo nesse ritmo nos próximos anos – o que tudo indica que acontecerá – os leitores deste texto podem fazer parte da primeira geração de seres humanos para quem as profecias da Sibila de Eritreia façam realmente sentido.
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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca
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