Compositor, alemão, judeu, cristão
3 de fevereiro de 2009A família Mendelssohn corporificou o ideal do judeu alemão assimilado, inteiramente integrado na sociedade; um exemplo perfeito do sucesso da simbiose teuto-judaica, proclamada a partir da utopia de tolerância de Gotthold Ephraim Lessing.
Felix Mendelssohn-Bartholdy foi o primeiro compositor israelita da Alemanha a ser cumulado de honrarias, ocupar cargos significativos, assim como alcançar destaque social e ser celebrado em toda a Europa. Como confirma Hans-Günter Klein, especialista na biografia do músico, sua origem semita passou a não ter maior significado.
"Desde o início, ele recebeu formação cristã, nem mesmo foi circuncidado após o nascimento. Seus progenitores, em especial o pai, se distanciavam muito claramente do judaísmo." Sua mãe definia a circuncisão como uma "cerimônia canibalesca", a que não desejava submeter seus filhos. "Quer dizer, ele foi educado numa família declaradamente cristã, porém num sentido geral e esclarecido", explica Klein.
Ao fazer a confirmação (profissão da fé correspondente à crisma), teve que prestar contas de forma detalhada sobre sua noção de religião e cristianismo, do ponto de vista luterano. Mendelssohn o fez de uma forma que "ocorreu com grande convicção, não foi, por assim dizer, nada só aprendido ou imposto", conclui o biógrafo.
Histórico de assimilação
O avô de Felix, Moses Mendelssohn, nascera em Dessau, num dos bairros judaicos onde os semitas tinham que viver, até que Napoleão Bonaparte abrisse todos os guetos da Europa. Apesar das posses modestas de sua família, ele recebeu educação esmerada e logo teve seus talentos especiais reconhecidos.
Através dos estudos talmúdicos, assim como dos idiomas alemão, latim, francês e inglês, além de outros conhecimentos seculares, Moses tornou-se um dos mais destacados filósofos do Esclarecimento judaico, empenhando-se por melhorar a situação da minoria na Europa.
Seus filhos Josef e Abraham (pai de Felix) fundaram a casa bancária Mendelssohn & Co. Por volta de 1850, tornaram-se banqueiros da corte do czar da Rússia, dominando o mercado financeiro para créditos estatais russos na Europa Central, até o início da Primeira Guerra Mundial.
A instituição enfrentou bem as vicissitudes da República de Weimar e da Grande Depressão de 1929. Porém, no contexto da arianização da Alemanha pelo regime nacional-socialista, em 1939 o Banco Mendelssohn foi liquidado e incorporado pelo Deutsche Bank, sem qualquer tipo de compensação.
Orientação cristã
Em 1812, o rei Frederico Guilherme 3º decretou uma progressista lei de emancipação para os judeus da Prússia, A partir daí, sua assimilação transcorreu rapidamente – embora a igualdade perante a lei tivesse que esperar até 1869. Os israelitas penetraram na classe média e na burguesia abastada, contribuindo para o perfil da vida cultural e política do norte alemão.
Todos os filhos de Abraham e Lea Mendelssohn receberam educação cristã, sendo batizados na fé luterana em 1816. Na ocasião, Felix recebeu seus nomes de batismo – Jakob e Ludwig, e um sobrenome "cristão" – Bartholdy – foi acrescentado ao nome da família.
Os pais se converteram ao cristianismo em 1822. Assim como seus irmãos – a também musicista Fanny, Rebecca e Paul –, Felix não chegou a ser foi registrado nas comunidades judaicas de Hamburgo e Berlim, para onde a família se mudara em 1811, nem teve qualquer contato com os usos e a religião semita.
Segundo Hans-Günter Klein, Mendelssohn "não se ocupou em detalhe das tradições judaicas. Ele provavelmente jamais pisou uma sinagoga". Na realidade, isto representava para ele um papel subalterno.Embora manifestasse grande interesse pelas obras filosófico-religiosas do avô, "a crença protestante era mesmo muito dominante para ele".
Conectado com a nata da música
Nascido em Hamburgo em 3 de fevereiro de 1809, Felix Mendelssohn-Bartholdy recebeu da mãe as primeiras aulas de música, juntamente com Fanny. Lea Mendelssohn representava a linhagem musical de Johann Sebastian Bach, pois estudara com um de seus principais discípulos, Johann Philipp Kirnberger. Também a tia-avó das crianças, Sara Levi, fora aluna de um dos filhos do velho Bach, Carl Philipp Emanuel, e mecenas de outro, Wilhelm Friedmann.
Além de pianista exímio e cantor, Felix logo demonstrou grande facilidade para a composição. Começando a escrever aos 11 anos de idade, no espaço de um ano já contava quase 60 opus, entre canções, peças para piano, órgão e de câmara, e até mesmo uma obra dramática em três cenas.
Com apenas 12 anos, visitou durante 16 dias o literato Johann Wolfgang Goethe em Weimar. Em Berlim, ficou conhecendo o compositor Carl Maria von Weber, em Kassel, Ludwig Spohr. Em 1825, o pai o levou a Paris, onde encontraria dois expoentes da ópera: Gioachino Rossini e o também judeu Giacomo Meyerbeer. Nos anos seguintes, a trajetória de êxito de Felix Mendelssohn como compositor, pianista e regente o levaria a Londres, Munique, Stuttgart, Frankfurt e Düsseldorf.
"Classicista, epígono, redundante"
Mendelssohn acumulou numerosos cargos de prestígio. Ele foi diretor geral de música de Frederico Guilherme 4º, rei da Prússia, regeu as melhores orquestras da época e fundou o primeiro conservatório alemão. Entre seus méritos está o de haver sido corresponsável pela redescoberta da música de Johann Sebastian Bach no século 19. Entretanto, nem tais distinções, nem a morte prematura, em 1847, em Leipzig, o colocaram acima de críticas.
Para a música europeia, a época que se seguiu à morte de Beethoven, em 1827, foi de fortes contradições. De um lado, a cultura musical burguesa que se desenvolvia rapidamente, com todas as vantagens e desvantagens de uma produção dirigida ao mercado; do outro, o contato da música com o historicismo, resultando no desenvolvimento de uma consciência histórica musical e na negação da tradição, no tocante a formas e gêneros.
Assim, não é de espantar que Mendelssohn haja sido, ainda em vida, rotulado como "classicista". Embora procurando conectar-se com a época romântica, que – no espírito de Friedrich Hegel – buscava a abolição e fusão dos gêneros musicais, o compositor hamburguês se atinha às formas tradicionais: concerto, sinfonia, canção, ópera, quarteto. Musicólogos e pensadores, de Bernard Shaw a Theodor Adorno e o pianista Alfred Brendel, o acusariam de epigonia, formalismo e redundância.
Saindo do ostracismo
A estas críticas técnico-musicais, aliou-se a ideológica. Richard Wagner contribuiu decisivamente para uma campanha de caráter antissemita – isto embora os diários de sua esposa, Cosima, revelassem o quanto Wagner apreciava e admirava, secretamente, a música mendelssohniana.
O fato de Mendelssohn haver sido íntimo da rainha Vitória e do príncipe Alberto também o tornou persona non grata do movimento antivitoriano, no final do século 19. E o banimento de sua música pelos nazistas – ao lado da de Meyerbeer, Gustav Mahler e outros de origem judaica – foi um duro golpe, do qual a fama do compositor até hoje não se recuperou inteiramente.
Excetuadas talvez algumas Canções sem palavras para piano, o Concerto para violino em mi menor e a música incidental para o Sonho de uma noite de verão, ele é um compositor que programadores e melômanos "esquecem" frequentemente, pelo menos na Alemanha. E mesmo em Berlim, onde viveu algumas de suas maiores realizações como músico, observa Hans-Günter Klein.
"Depois que os nazistas proibiram Mendelssohn, ele praticamente desapareceu da consciência de Berlim. De vez em quando ocorriam homenagens semioficiais, mas, na verdade, nas primeiras décadas depois de 1945, a cidade não fez tanto assim por ele. Só agora isto começa a mudar."