Famílias vendem crianças para sobreviver no Afeganistão
21 de novembro de 2021Com uma crise econômica que já dura décadas, fortemente atingido por uma longa seca e com o Talibã de volta ao poder após quase 20 anos, em meados de agosto, o Afeganistão tem vivido dias cada vez mais sombrios. Enquanto o regime ainda busca reconhecimento internacional e, ao mesmo tempo, encara a situação degradante do país, os pobres pagam o preço mais alto.
Algumas famílias enfrentam tamanha dificuldade que não têm outra alternativa a não ser vender os próprios filhos para pagar dívidas. Mohammad Ibrahim, um residente de Cabul, disse à DW que, sem outra opção para quitar um débito que a família tinha e ter a casa queimada, aceitou negociar a filha de 7 anos.
"Uma pessoa veio e me disse para pagar a dívida ou ‘queimarei sua casa até virar cinzas'", disse Ibrahim. Em contrapartida, foi-lhe oferecida a chance de "desistir de sua filha. O homem era uma pessoa rica. E eu não tinha outra opção e aceitei oferecê-la em troca de 65.000 afeganes (em torno de 620 euros, ou quase R$ 4.000)", complementou.
"É difícil oferecer sua filha por dívidas. Não tínhamos mais nada a oferecer, exceto nossa própria filha", afirmou Nazo, esposa de Ibrahim.
Conforme um relatório publicado pela Unicef - agência das Nações Unidas responsável por fornecer ajuda humanitária e desenvolvimento a crianças de todo o mundo -, "a pandemia de covid-19, a crise alimentar em curso e o início do inverno agravaram ainda mais a situação das famílias. Em 2020, quase metade da população do Afeganistão era tão pobre que lhes faltavam necessidades como nutrição básica ou água limpa".
Detalhe: tudo isso foi relatado pela Unicef antes da recente convulsão política e social no país. Segundo a entidade, milhões de crianças seguem precisando de serviços essenciais, como cuidados de saúde primários, vacinas contra a poliomielite e o sarampo, nutrição, educação, proteção, abrigo, água e saneamento.
Filhas para garantir a sobrevivência
Na província de Badghis, noroeste do país, os moradores foram duramente atingidos por secas prolongadas e, assim, tiveram de deixar os vilarejos e as casas para trás. Najeeba, uma jovem que vive em um acampamento, foi trocada por sua família em troca de 50.000 afeganes.
"Faz muito frio durante a noite, e não temos nada para aquecer nossas casas. Queremos que as ONGs nos ajudem. Ainda sou uma menina. Eu tenho dois irmãos, uma irmã e uma mãe. Eu não quero me casar. Eu quero estudar e ser educada", disse Najeeba à DW.
Gul Ahmad, pai de Najeeba, não vê outra alternativa a não ser vender suas outras filhas para conseguir pagar as contas.
"Não tenho outra opção e, se formos abandonados, serei forçado a vender minhas outras filhas por 50, 30 ou até mesmo 20.000 afeganes ", disse Ahmad.
O custo humano das hostilidades segue muito intenso no Afeganistão. A ONU está particularmente preocupada com o impacto do conflito sobre as mulheres e meninas. Cerca de 80% entre quase 250 mil afegãos forçados a fugir desde o final de maio são mulheres e crianças.
De acordo com o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA, na sigla em inglês), de 1º de janeiro a 18 de outubro deste ano, 667.903 pessoas fugiram de suas casas por causa do conflito. Das 34 províncias do país, 33 registraram deslocamentos forçados.
Mais da metade da população em pobreza extrema, segundo a ONU
O Programa Mundial de Alimentação (WFP, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas, estima que mais da metade da população do Afeganistão vive abaixo da linha da pobreza, e a insegurança alimentar - que é a falta de acesso a suprimentos básicos de nutrição - está aumentando, muito devido à instabilidade política, social e econômica que atinge comunidades inteiras.
O WFP afirma que ao menos 22,8 milhões de pessoas, de um total de quase 35 milhões de habitantes, são afetadas pela insegurança alimentar no país, incluindo as centenas de milhares que tiveram de fugir de conflitos desde o início deste ano.
O aumento da pobreza pode ser ainda mais perceptível pela ausência cada vez maior de movimento nas ruas de Cabul, antes coloridas e cheias de pessoas.
A economia deve encolher até 30% em 2021, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Produto Interno Bruto (PIB) foi de cerca de 20 bilhões de dólares em 2020 (o do Brasil, para se ter uma ideia, foi de 1,3 trilhões).
De acordo com o Banco Mundial, 43% desse valor foi baseado em dinheiro de ajuda proveniente do exterior. Antes do retorno do Talibã, 75% dos gastos públicos vinham de doações de ajuda externa.
A saída das forças estrangeiras e de muitos patrocinadores internacionais deixou o país sem doações, que financiaram três quartos dos gastos públicos.
Nos últimos meses, o governo do Talibã tem lutado para pagar salários de funcionários públicos, enquanto os preços dos alimentos subiram e os bancos enfrentaram uma crise de liquidez.
Muitos afegãos estão vendendo bens para comprar alimentos. A muitos deles, a menos que o Afeganistão receba ajuda do exterior, a pobreza extrema pode fazer com que tenham de vender outros filhos e filhas.
"A hora é agora"
Enquanto o regime do Talibã segue em negociações pelo reconhecimento internacional e tenta, assim, evitar o colapso econômico do país, as organizações internacionais de bem-estar pedem ajuda humanitária imediata.
No início desta semana, o diretor-executivo do WFP, David Beasley, pediu apoio maciço durante reunião com lideranças em Genebra, na Suíça.
"O momento é agora, não podemos esperar seis meses. Precisamos de fundos imediatamente para que possamos movimentar os suprimentos antes que o inverno chegue de vez. Não podemos virar as costas para o povo do Afeganistão", disse Beasley.
Crescimento na taxa de suicídio
Enquanto as fontes de renda secaram para muitos e o desemprego segue crescendo no Afeganistão, tem ocorrido também um crescimento nos índices de suicídios. Rohullah, 60 anos, guarda de uma escola administrada pelo governo no norte de Badakhshan, sem receber salário nos últimos três meses, tomou a decisão de se matar, deixando para trás uma família de luto.
Taiba, filha de Rohullah, contou à DW: "Ele não disse nada. Um dia, estávamos todos em casa, e ele pediu uma caneta e um papel para anotar as dívidas que tínhamos. Todos nós pensamos que ele estava brincando conosco, mas ele estava falando sério e, alguns dias depois, cometeu suicídio."
Qatiba, outra filha de Rohullah, afirmou: "Enfrentamos muitos problemas e, desde que nosso pai morreu, não temos nada para comer."