"Experiência chinesa tem lições que podem servir ao Brasil"
13 de agosto de 2023A pujança econômica da China é em parte resultado de o país ter conseguido desviar de um conjunto de políticas pós-Guerra Fria que visava converter economias socialistas em de mercado de uma só vez, e no lugar ter desenvolvido um tipo de capitalismo que tem o Estado como eixo estratégico para o crescimento, diz à DW a economista alemã Isabella M. Weber, professora na Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos.
Autora de Como a China escapou da terapia do choque, lançado em julho no Brasil pela editora Boitempo, Weber contrasta o forte crescimento chinês após o fim da Guerra Fria ao desempenho inferior da Rússia, e diz que algumas políticas de Pequim poderiam servir de inspiração ao Brasil.
O livro de Weber recebeu o prêmio de melhor obra interdisciplinar da Associação de Estudos Internacionais (ISA) e foi incluído nas listas de melhores livros de 2021 pelo jornal britânico Financial Times.
"[Na Rússia] a terapia de choque causou uma das mais profundas e mais prolongadas recessões na história recente e a mais dramática desindustrialização de um superpotência", disse. "Na China, o Estado manteve o controle da espinha dorsal da economia e, aos poucos, introduziu mecanismos de mercado nas margens desse sistema."
No livro, a economista relata como um encontro entre economistas chineses com o ex-ministro da Fazenda do Brasil, Antônio Delfim Netto, na década de 80 desencadeou uma discussão sobre inflação na China, e discute se o país asiático teria experiências úteis para outros países, como para o Brasil.
"A China tem um sistema sofisticado de taxas de juros diferenciadas e condições de crédito para áreas das quais eles querem incentivar o investimento", afirma. "O que a experiência chinesa nos ensina é que é possível atrair investimentos externos, mas que é necessário desenhar as instituições para que o investimento de fora não seja apenas superficial."
Weber diz ainda que, mesmo com a guerra comercial entre China e Estados Unidos, países como a Alemanha não conseguirão romper a dependência do mercado chinês no curtíssimo prazo sem consequências. "Esse tipo de pânico em relação à influência chinesa pode ser mais perigoso para a Europa do que para os Estados Unidos dado a condição de desenvolvimento das economias do continente, que dependem mais do mercado mundial", disse.
DW: O que é a chamada "terapia de choque" que a senhora cita em seu livro e como a China escapou dela?
Isabella M. Weber: A terapia do choque é um pacote de políticas econômicas criado para que houvesse uma transição de economia planificada do socialismo para a economia de mercado do capitalismo. A ideia é que você deveria liberar todos os preços de uma vez, como um big bang, para que estivessem de acordo com os do mercado global, privatizar as indústrias, liberar o comércio e, finalmente, impor uma austeridade macroeconômica para garantir que essa liberação dos preços não aumentasse a inflação.
A terapia de choque não é um projeto de construção, mas é um projeto de destruição do que estava lá. Nela, o mercado é visto como um tipo de ordem natural espontânea que vai aparecer se você derrubar todas as intervenções não naturais, distorções, instituições artificiais, etc. Ela sugere que uma economia de mercado vai aparecer como uma fênix, das cinzas das instituições de uma economia planejada. Mas isso nunca funcionou. Mesmo onde o mercado tem mais sucesso, ele sempre tem sido complementado com outros tipos de políticas.
Em alguns casos, a terapia do choque causou um desastre econômico extremo. É o caso da Rússia, que implementou uma terapia de choque completa ao fim da URSS. Há muitas variáveis aqui, como a desintegração de um Estado, é claro, mas por lá a terapia de choque causou uma das mais profundas e mais prolongadas recessões na história recente e a mais dramática desindustrialização de uma superpotência.
Na China, por sua vez, o Estado manteve o controle da espinha dorsal da economia e, aos poucos, introduziu mecanismos de mercado nas margens desse sistema. Isso iniciou uma nova dinâmica que, eventualmente, transformou o núcleo da economia, mas manteve o controle de importantes instituições com o Estado. O país não fez algo para criar um novo mercado apenas privado, mas um mercado que também pudesse participar via Estado.
Desde o final da década de 70, quando começaram as primeiras discussões sobre reformas, a China abriu seu mercado de uma forma estratégica, focada em alcançar o seu próprio projeto de desenvolvimento. A ideia era que você colocasse o capital estrangeiro nas regiões das costas para o desenvolvimento da indústria manufatureira, usando a competitividade da China ao ter um mercado de trabalho barato, para obter um desenvolvimento intensivo.
Isso significa que você está se integrando ao capitalismo global, mas não está dependendo financeiramente, pelo menos não no sentido imediato, das formas que você estaria se você fosse fazer a abertura como um big bang.
Alguns economistas afirmam que o Estado deve ser pequeno, mas você afirma que o Estado neoliberal é, na realidade, forte para proteger o mercado. Como a China utiliza esse Estado em seu sistema econômico?
Havia uma compreensão do neoliberalismo simplesmente como o recuo do Estado. Mas, na literatura mais recente, houve um reconhecimento de que, na verdade, no neoliberalismo o Estado tem sido muito poderoso.
Se você observar o neoliberalismo de [Augusto] Pinochet [ex-ditador do Chile], você tem uma ditadura militar aliada a uma política econômica muito neoliberal. Então, isso mostra que é um Estado muito forte, muito violento, de fato.
Na China dos anos 80, houve também um debate que, caso o país optasse por fazer um big bang com a liberação dos preços, isso significaria que precisariam trazer tanques às ruas e ter um Estado muito forte e violento para fornecer essa política. Isso acabou por ocorrer em 1989, também por uma reação ao aumento da inflação que chegava como parte da liberação dos preços.
No caso chinês, você também tem um Estado muito forte em todas as dimensões, mas o diferencial é ter um Estado com uma enorme capacidade na esfera econômica. Dentro do Estado chinês, há bancos, grandes agências comerciais, empresas de trens de alta velocidade, enfim, companhias de diversas áreas, algumas das quais são bastante exigentes tecnicamente. Também há pessoas que sabem gerir esse tipo de negócio, que mostram o tamanho da capacidade do Estado chinês, em uma forma concreta.
Os líderes políticos da China geralmente trocam de bastante de cargos e, dentro desse processo, eles também passam por posições dentro de uma dessas instituições comerciais de Estado.
Isso significa que, por lá, o poder político tem bastante experiência econômica. Não necessariamente no sentido de ter estudado a economia, mas no sentido de ter feito operações econômicas de grande escala. O que eu acho interessante e bem diferente da carreira de políticos em contexto democrático.
No seu livro, você cita encontros dos economistas reformistas da China com o ex-ministro da Fazenda do Brasil, Antônio Delfim Netto, na década de 80. Como foi isso?
Este é um episódio muito contestado na China, porque algumas pessoas interpretaram a ida da delegação chinesa ao Brasil para falar com Delfim Neto como uma representação de que a China não teria que se preocupar com a inflação, pois sempre haveria alta nos preços quando um país cresce muito rápido.
Acho que não é uma interpretação correta. Nós temos que ver que, na China nos anos 40, havia uma grande ansiedade em relação à inflação. Os nacionalistas perderam a capacidade de segurar a alta dos preços no país à época e por isso perderam poder. Na década de 80, o regime estava muito preocupado porque, se a inflação voltasse à China, poderia atingir o controle e a estabilidade política.
A mensagem que os chineses levaram do encontro com Delfim Netto era mais sobre entender a inflação como um fenômeno que existe, que necessita de controle, mas que não deveria ser controlada pela austeridade e contenção monetária.
Em relação às diferenças entre o Brasil e a China, por lá, ao fim da década de 80, quando a inflação na China estava na casa dos 20% ao ano, o que era muito alta para os padrões do país, eles reforçaram o controle sobre a inflação dentro do sistema de planejamento para a meta de inflação.
Eles também recontrolaram certos preços estratégicos e usaram uma política oriunda dos anos 40, logo depois da revolução, que foi baseada em ter uma garantia para que a moeda pudesse ser trocada por uma certa cesta de bens essenciais a uma taxa estável.
Isso foi algo importante para reconquistar a confiança das pessoas na moeda e garantir que o dinheiro pudesse comprar as coisas mais importantes, mesmo com a inflação em um período de alta.
Você diz que a "China manteve o controle sobre setores estratégicos quando passou do planejamento direto para a regulação indireta com a participação estatal do mercado". Isso poderia trazer alguma inspiração para o Brasil?
O que a experiência chinesa nos ensina é que, de certa forma, é possível atrair investimentos externos, mas que, quando você faz isso, é necessário desenhar as instituições com muito cuidado para fazer com que o investimento de fora não seja apenas superficial, sem atingir de verdade a economia doméstica. Acho que a China faz isso, com sucessos e falhas, mas que há muito o que ser aprendido com o que ocorre por lá.
Em relação a políticas específicas, como o papel de bancos de Estado e como eles têm encorajado certos tipos de investimentos, acho que há lições específicas que podem ser tiradas da experiência chinesa e que podem servir de base à formulação de políticas no Brasil.
A China tem, por exemplo, um sistema bastante sofisticado e complexo de taxas de juros diferenciadas e condições de crédito para áreas das quais eles querem incentivar o investimento.
Por exemplo, há propostas na União Europeia para que o Banco Central Europeu também ofereça taxas de juros diferenciadas para projetos verdes, afinal as pessoas não querem prejudicar a transição verde porque o bloco está aumentando as taxas de juros para combater a inflação.
Portanto, tendo taxas de juros diferenciadas, que são parte de uma grande missão, em direção a certos projetos estratégicos é algo que a China vem fazendo extensivamente. Isso é algo que um país pode aprender e tentar entender como algo assim poderia funcionar em seu próprio Estado.
A China desponta como potência, trazendo uma preocupação sobre uma possível dependência econômica da Europa em relação ao país. O continente poderá se tornar cada vez mais dependente da China?
Para a economia alemã em particular, eu acho que é importante reconhecer que estruturalmente, a Alemanha está em uma posição muito diferente do que a dos Estados Unidos, por exemplo, dado que a Alemanha é um país de exportação de suprimentos.
Agora, se a Alemanha impõe austeridade para o resto da Europa, como nosso ministro [alemão] das Finanças vem fazendo, isso significa que eles não estão criando mais demanda para produtos alemães no continente.
Além disso, esse tipo de pânico em relação à influência chinesa pode ser mais perigoso para a Europa do que para os Estados Unidos dado a condição de desenvolvimento das economias do continente, que dependem mais do mercado mundial.