"Eu tenho nada para dizer, e é o que estou dizendo"
13 de agosto de 2002Quer se aprecie sua obra, quer não, John Cage conta entre os grandes revolucionários da música. Após a Segunda Guerra Mundial, numa época em que esta arte tendia para uma complexidade e controle de parâmetros sem precedentes, ele empregou o acaso e a improvisação como elementos construtivos. Partindo da pergunta básica "Um som ouvido dentro de um conservatório é mais musical do que um som do lado de fora?", Cage também abriu a sala de concertos para todo um mundo de eventos, até então excluídos dos domínios da música.
Ele nasceu em 5 setembro de 1912 em Los Angeles, filho de uma redatora de jornal com um engenheiro e inventor. Havendo estudado piano na infância, em 1930 interrompeu o estudo de Literatura e viajou para a Europa, onde começou um curso de Arquitetura, além de realizar suas primeiras tentativas como pintor e compositor. Dois anos mais tarde retornava para Los Angeles.
As aulas com o austríaco Arnold Schoenberg foram o que se pode chamar de uma "anti-influência" no desenvolvimento do jovem compositor. O pai do dodecafonismo – método extremamente cerebral de composição – diagnosticou-lhe total falta de senso harmônico. Um veredicto decisivo para a história da música, pois levou John Cage a procurar seu caminho artístico para além das categorias tradicionais.
O acaso tem a palavra
Uma das primeiras revoluções que propôs foi o "piano preparado", uma idéia nascida de maneira tipicamente despretensiosa: em 1937 ele recebera a incumbência de escrever música para uma peça de dança, dispondo apenas de um piano de armário. Para contornar tal limitação de meios, aplicou porcas, parafusos, bilhas e outros objetos às cordas: o instrumento tratado desta forma emitia sonoridades comparáveis às de uma orquestra de percussão balinesa.
Outra "obra" – conceito, a rigor, estranho ao universo cageano – definitiva é 4'33", de 1952: a cifra representa o tempo durante o qual o instrumentista permanece em silêncio absoluto, apenas pontuando os diferentes "movimentos" com um gesto, como fechar ou abrir a tampa do piano. Aqui, a intenção foi abrir os ouvidos para o universo de sons que preenchem um auditório "em silêncio" e, por conseguinte, questionar a própria instituição do concerto.
Acaso e indeterminação são os protagonistas de grande parte de suas peças, nas mais variadas formas. Uma delas é o uso da técnica de adivinhação do I-Ching para tomar decisões musicais ao vivo (Cage também foi fortemente influenciado pela filosofia oriental). Outra é a inclusão de elementos sonoramente imprevisíveis na instrumentação – como rádios de pilha – excluindo qualquer controle prévio sobre o resultado.
Em outro caso, numa de suas numerosas peças eletroacústicas, Cage usou, como material para uma colagem sonora, restos de fita magnética da lata de lixo do estúdio, descartados por outros compositores. Sua colaboração com o Studio Ars Acustica da Rádio WDR, de Colônia, foi longa e constante, resultando em 11 peças para rádio ou sala de concerto, dentre as quais Roaratorio ("um circo irlandês sobre Finnegan's Wake") e James Joyce, Marcel Duchamp, Erik Satie: Ein Alphabet.
O guru sorridente
A partir da década de 50, suas técnicas conquistam pelo menos uma parte do mundo da música nova, sobretudo aqueles enfadados pelos extremos de complexidade e exigência intelectual do serialismo (a organização total dos sons a partir de tabelas quase matemáticas). Na Europa, e em especial na Alemanha, o iconoclasta Cage atinge a categoria de guru. Em cada turnê, sua presença é celebrada em palestras, leituras, concertos e happenings de várias horas de duração.
A fascinação do anti-herói da música nova inspirou uma legião de adeptos, não só no seu próprio campo. Diversos cineastas, como os alemães Klaus Wildenhahn (John Cage, de 1966) e Hennig Lohner (Die Entstehung des Spielfilms 'One high 11 and 103' – sobre a última obra do músico – e John Cage: Die Utopie im Niemandsland, ambos de 1992), tentaram repetidamente captar o suave e bem-humorado carisma do filósofo zen da música do século 20.
Uma escola?
Já algumas gerações de compositores perpetuam a filosofia de distanciar-se do conceito de obra e do papel de criador, concebendo o concerto como um anti-evento. Nos piores dos casos, não passarão de meros epígonos: então, reencontramos os instrumentos "preparados", as peças de silêncio, a multimídia de um primitivismo tecnológico ostensivo e os incidentes sonoros e cênicos desconcertantes, porém são apenas ecos, desprovidos de convicção ou de sentido.
Apesar de tudo, o fenômeno Cage perdura, também na Alemanha. Entre outras instituições, o estúdio e editora Feedback, dirigido pelo compositor e professor Johannes Fritsch na cidade de Colônia, mantém viva a herança do compositor, na forma de publicações e criações musicais. E uma pequena legião de intérpretes dedicados – como a cantora norte-americana Beth Griffith – é fator indispensável para a sobrevivência do repertório de Cage e companhia.
Embora ainda haja presenciado em vida o surgimento de seu próprio culto – e contribuído para o mesmo, segundo as más línguas –, o que diria o músico, poeta, ensaísta, filósofo zen e especialista em cogumelos – sempre antiacadêmico e iconoclasta – do fato de haver criado uma verdadeira "escola" de composição? Difícil prever a reação desse amante dos paradoxos, mas talvez recordasse aos fiéis seguidores uma de suas grandes frases: "Eu tenho nada para dizer, e é o que estou dizendo".