Estados falham na ressocialização de jovens infratores, critica juíza
26 de novembro de 2013Antes de atingir a maioridade penal (18 anos), jovens infratores são levados para unidades de internação, onde recebem as punições previstas na lei, o que inclui medidas socioeducativas.
Mas a lei – no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as leis do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) – não é respeitada, afirmou à DW Brasil a juíza Marina Gurgel, que atua na área de infância e juventude do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Depois de visitas às unidades de internação em todos os estados brasileiros nos últimos dois anos, o departamento concluiu que a estrutura é precária, que faltam investimentos e que há pouco zelo pela integridade física dos detentos, entre outros problemas. "Infelizmente essa situação é quase generalizada", disse Gurgel, para quem o problema não está no modelo adotado, mas na execução das leis.
Na entrevista, ela também critica as propostas – em tramitação no Congresso - que propõem a redução da maioridade penal para 16 anos.
DW Brasil: O CNJ, como órgão fiscalizador do Poder Judiciário, faz vistorias periódicas às unidades de internação. Como a senhora avalia a situação atual do jovem infrator no país?
Marina Gurgel: A partir das inspeções do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), que é um departamento específico do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tivemos a possibilidade de fazer uma radiografia do sistema socioeducativo no país. O que pudemos averiguar é a ausência total de um plano pedagógico voltado à ressocialização desses adolescentes privados de liberdade.
Um dado que chama a atenção é amplitude do uso de drogas como crack e cocaína entre os adolescentes condenados ao cumprimento de medidas de internação e semiliberdade. A média nacional de usuários de drogas como maconha, crack e cocaína nessas unidades supera os 74%. Na região Centro-Oeste, chega a 80%. É um dado assustador.
E o que mais nos preocupa, além da ausência de um projeto pedagógico para esses adolescentes, que seria primordial para a ressocialização, é a falta de acesso desses jovens a um tratamento para essa dependência química. E quando falamos de crack, a situação é ainda mais complexa, porque o crack é uma droga que tem como pano de fundo não só a questão química da dependência, que é devastadora, mas também um pano de fundo social.
Que aspectos são observados nessas visitas?
Outro aspecto que chama a atenção é a total falta de investimento dos governadores. E o que se nota são estruturas físicas absolutamente falhas, deficientes, sujas, inadequadas, ainda com característica prisional, como celas, e a falta de investimento contínuo na manutenção, na reforma e na estrutura física.
A falta de investimento passa não apenas pela construção e reforma, mas também – e principalmente – pela falta de investimento nas equipes técnicas que deveriam dar esse suporte pedagógico para a ressocialização dos adolescentes.
O adolescente que comete um delito e entra no sistema deve receber um tratamento que priorize sua reeducação e deve haver respeito à sua integridade física, mas casos de abuso sexual e mortes por homicídio foram registrados em dezenas de unidades.
A falta de capacitação do que chamamos de agentes socioeducadores também é algo que chama a atenção. Muitas vezes esses abusos são praticados pelos próprios socioeducadores à revelia de uma fiscalização e de um processo disciplinar que venha a apurar esses fatos.
Isso é algo muito grave porque, a partir do momento em que o adolescente está sob custódia, a responsabilidade por sua integridade física é do Estado. Então o Estado poderia ser responsabilizado por esses abusos.
O Sinase determina que devem ser priorizadas as medidas em meio aberto, como prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida, em vez das medidas que restringem a liberdade. Como a senhora avalia, então, as discussões sobre redução da maioridade penal, nessa conjuntura que descreveu?
Esse discurso, no atual panorama, é absolutamente descabido. Na realidade, o ECA nunca foi implementado em sua integridade, e muito menos a lei do Sinase. O Estado não está cumprindo com o princípio da intervenção precoce, que seria interceptar o adolescente quando ele ainda está cometendo atos infracionais menos graves, de modo a ressocializá-lo ainda no início e interromper a escalada para atos infracionais mais graves.
Então quando o meio aberto falha, o Estado começa a apostar apenas na reprimenda, o que é um grande erro.
É possível apontar em quais regiões do país a situação é mais crítica?
Infelizmente essa situação é quase que generalizada. Fica muito difícil apontar uma região que esteja em situação mais grave, mas, por exemplo, estive recentemente em Alagoas. Deu muita tristeza fazer as inspeções naquele estado e verificar as unidades de internação absolutamente destruídas, com ocorrência de rebeliões gravíssimas, como também aconteceu em Sergipe, onde também pude estar presente, junto com a equipe do DMF. A situação é muito semelhante em todas as regiões no país.
Qual seria a saída?
Eu não culparia o modelo em relação ao que diagnosticamos. Acho que o problema é muito mais a execução do que o modelo. Não há como fazer essa crítica ao modelo antes de implementá-lo plenamente. Temos, sim, que cobrar dos gestores públicos uma maior sensibilização para que eles venham a priorizar verdadeiramente os direitos da infância e da juventude, neles incluídos o direito desses adolescentes de serem reintegrados à sociedade e terem acesso a políticas públicas para que possam ser no futuro cidadãos de bem, pessoas que possam ter família, emprego e esperança.