Esquerda do Brasil precisa reconhecer que mundo mudou
4 de março de 2020Várias razões importantes explicam a ascensão da extrema direita em todo o mundo. Elas também se aplicam ao Brasil de Bolsonaro e têm a ver com mudanças profundas em nossas sociedades e a incerteza que resulta disso.
Pessoas inseguras preferem soluções simples, são mais suscetíveis ao ressentimento, ao autoritarismo e a grandes slogans. Se a esquerda do Brasil não conseguir oferecer respostas a esses desafios em breve e, em vez disso, preferir se fechar em sua arrogância moral, ela não será capaz de vencer o bolsonarismo.
O primeiro desafio é a transformação do nosso mundo de trabalho através da digitalização. Estamos vivenciando a quarta revolução industrial. Ela traz imensas mudanças e produz vencedores e perdedores.
Também no Brasil, inúmeros empregos se tornarão obsoletos nos próximos anos, porque há máquinas cada vez mais inteligentes, como caixas registradoras automáticas e veículos autônomos. Haverá milhões de pessoas que não serão mais necessárias. Um motorista de ônibus ou uma vendedora dificilmente poderão ser treinados como especialista em TI.
Ao mesmo tempo, a digitalização no Brasil está produzindo uma maciça uberização do trabalho. Já em 2019 a maior parte do desempenho positivo do mercado se devia à geração de empregos no precário setor de serviços. São empregos mal remunerados, que não oferecem nenhuma segurança e transferem toda a responsabilidade para o funcionário.
Para muitas pessoas, a única saída será a autoexploração como autônomo. O melhor exemplo disso são as centenas de funcionários de entrega com bicicletas alugadas, que povoam agora as ruas das cidades brasileiras.
Esse sentimento de vulnerabilidade leva muitas pessoas aos braços de charlatães que lhes prometem segurança, mas na verdade privam os trabalhadores de seus últimos direitos – como Paulo Guedes. A esquerda do Brasil ainda não encontrou uma resposta para a revolução digital. E eu duvido que ela esteja se ocupando disso.
Em segundo lugar, vem a profunda mudança do discurso da sociedade pelas redes sociais. Hoje em dia, qualquer um pode propagar qualquer mentira, manipulando e direcionando assim a opinião pública.
Não se trata mais de fatos, mas de sentimentos. A verdade parece ter se tornado relativa. A direita brasileira, em especial, domina perfeitamente o jogo com a mentira por não ter escrúpulos morais. Para ela, os fins justificam todos os meios. E a esquerda brasileira também ainda não encontrou uma resposta para isso.
Em terceiro lugar das mudanças radicais, vem a mudança étnica em nossas sociedades. Na Europa e nos Estados Unidos, há um crescente número de pessoas que não são brancas. Trata-se de imigrantes ou filhos de imigrantes. Eles estão se tornando cada vez mais visíveis porque também ocupam posições sociais importantes e passam a se manifestar. Isso cria reações de resistência entre setores da população que temem por sua posição privilegiada.
No Brasil, vivenciamos essa mudança com a ascensão social de cada vez mais jovens negros. Graças aos programas estatais, eles estão conseguindo mais acesso à educação e melhores oportunidades de carreira. Isso perturba enormemente a população branca e privilegiada brasileira. Ela prefere ficar entre si.
A declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que as empregadas domésticas não devem viajar para o exterior é uma expressão dessa atitude, como também a censura de um comercial do Banco do Brasil pelo presidente Bolsonaro, que afirmou que os jovens negros no vídeo não representavam o Brasil.
O Brasil branco e conservador anseia o retorno a uma ordem social feudal em que todos possuem um lugar fixo. O governo Bolsonaro promete restaurar essa ordem. A esquerda deve deixar claro para os brasileiros de uma vez por todas que uma sociedade mais igualitária é melhor para todos, inclusive para os ricos.
Em quarto lugar, nossas sociedades estão passando por mudanças sexuais. Gays e lésbicas não se escondem mais, mas fazem parte do cotidiano e ocupam importantes posições sociais. O número de transexuais também está aumentando. As mulheres se apresentam de forma cada vez mais assertiva, exigindo seus direitos.
Tudo isso incomoda em particular homens heterossexuais com pouca autoconfiança. Sua única base é a suposta superioridade sobre mulheres e homossexuais. E quando esse poder é questionado, eles reagem de forma ainda mais agressiva.
Em todos os países do mundo governados pela extrema direita, o discurso contra homossexuais e feminismo está ficando mais intenso. O Brasil é um exemplo particularmente gritante disso. O presidente Bolsonaro parece obcecado em insultar e humilhar homossexuais e mulheres. Ainda mais alarmante, porém, é sua grande aprovação entre os brasileiros. Para isso, existe apenas um remédio: o ensino da tolerância nas escolas.
Extremistas de direita como Jair Bolsonaro beneficiam-se dos processos de transformação acima descritos porque têm sucesso em fingir que podem curar uma sociedade que saiu dos trilhos. Eles pregam um retorno ao passado. Isso é mais conveniente do que engendrar uma mudança.
Prefere-se ignorar que a mudança já está em pleno andamento. Como resultado, o Brasil está perdendo novamente um tempo importante. Em vez de pensar no futuro, o país se perde em discussões absurdas sobre expressões usadas pelo presidente e seus aliados. A esquerda brasileira também se deixa envolver nesse turbilhão.
O grande risco disso pode ser visto naquele que é provavelmente o problema mais urgente. As mudanças climáticas já causam catástrofes em todo o mundo. Também no Brasil, na forma de estiagens severas, tempestades e enormes quantidades de chuva.
Esses fenômenos climáticos extremos aumentarão e causarão enormes danos. O futuro da humanidade dependerá, em última análise, se ela será capaz de reverter essa situação. Mas as mudanças climáticas não são um tema importante no Brasil. Nem mesmo no âmbito da esquerda brasileira.
A recusa em enfrentar os difíceis processos de transformação levou o Brasil a ser um país atrasado. Se a esquerda progressista quer ter outra chance contra a atratividade do bolsonarismo, ela faria bem em finalmente se ocupar com essa mudança, em vez de responder a cada provocação do presidente.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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