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Entrevista com Iole de Freitas

Juliana Lugão6 de junho de 2007

Em entrevista à DW-WORLD, Iole de Freitas fala sobre o processo criativo, sua carreira nas artes plásticas e a instalação criada especialmente para o ''museu de 100 dias'' em Kassel.

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A instalação de Iole de Freitas já pode ser vista, em parte, por quem vai a KasselFoto: lole de Freitas

O trabalho começou em novembro de 2006, depois de um convite feito às pressas pela curadora Ruth Noack um mês antes. Em março passado, Iole de Freitas embarcou para Kassel, onde passou sete semanas para orientar as construções e montagens da sua instalação, que já interfere na paisagem da cidade. Na fachada do Fridericianum, um dos principais pontos de exposição da documenta 12, é possível ver esculturas de policarbonato com proporções gigantescas que atravessam as paredes da sala de exposições e, apesar de bem estáveis, parecem flutuar sobre os passantes.

Foram sete semanas exaustivas para finalizar um trabalho que propõe uma forma mais leve de ver o mundo. Entre cálculos, guindastes e muito trabalho de convencimento dos engenheiros alemães, Iole foi recompensada todas as noites por um céu tão estrelado que a fez levar de volta para casa os cilindros de concreto retirados da construção do museu de 1779. Com eles, ela vai criar duas constelações em seu ateliê no Brasil: o Cruzeiro do Sul, que vê de sua casa, e a Ursa Maior, que a encantava todas as noites em Kassel.

A artista conversou com a DW-WORLD sobre o processo criativo e seu trabalho para a documenta 12.

DW-WORLD: A luz tem muito espaço nas suas instalações. Como foi que esse elemento entrou nos seus estudos estéticos?

Iole de Freitas: Entrou em 1972, no meu primeiro trabalho, Light work. O processo fotográfico foi escolhido exatamente por lidar com a luz como uma questão essencial de sua linguagem. Um outro trabalho, apresentado simultaneamente ao Light work numa galeria de Milão, chamava-se Elements. Como o nome diz, este filme lidava com elementos, como água e mercúrio, sempre banhados por uma luminosidade diferenciada.

O Light work trabalhava exatamente com a observação de uma cortina entre espaço externo e espaço interno. O som do filme era o barulho da rua, enquanto a câmera, posicionada no espaço interno, registrava o externo através da película sutil de uma cortina de cor laranja, muito solar.

A gênese do meu trabalho está nessas duas obras. Investigo até hoje questões que passam pela presença da luz e de enormes planos retorcidos no espaço, num equilíbrio extremamente radical das chapas de policarbonato. No trabalho para a documenta, a translucidez das chapas tem origem nesse trabalho da cortina translúcida, no qual uma membrana visual sutil se coloca entre o espaço interno e externo, lançando a discussão sobre o público e o privado.

Em suma: todas as questões potencializadas a cada novo trabalho estavam nos filmes de dois minutos que produzi em 1972/1973. As seqüências fotográficas, como as apresentadas na Bienal dos Jovens Artistas em Paris, em 1975, vinham de fotogramas retirados desses filmes. O objetivo era, a partir dos fotogramas, criar uma síntese do movimento.

O seu trabalho sempre investigou a relação do corpo com o espaço. De que forma você acredita que o espaço interfere no corpo humano? Em que momento e por que você decidiu que a dança não era a melhor forma de se expressar?

A dança foi apenas uma das áreas que me possibilitou, nos períodos iniciais, investigar e entender as questões do deslocamento do corpo no espaço. Mas essa não é a única questão levantada pelo trabalho. Acredito que qualquer estrutura estética de linguagem seja constituída de muitos elementos e investigações.

A relação específica entre corpo e espaço vem se desenvolvendo no meu trabalho de maneira mais clara desde o final dos anos 90. Isso inclui a participação do espectador, uma vez que ele não apenas contempla, mas tem experiências, vive naquele lugar. Uma obra plástica como a da documenta dá ao espectador a oportunidade de percorrer uma arquitetura que foi primeiramente desconstruída, para depois apresentar novas possibilidades estéticas.

Grandes planos translúcidos retorcidos de dez metros e tubos metálicos preenchem o espaço com novas curvaturas e linhas. Esses elementos, junto com a incidência de luz, formam espécies de abrigos abertos (open shelters). Esses ambientes tanto abrigam as pessoas como as estimulam a sair dali e continuar percorrendo o espaço, a fim de que percebam as múltiplas possibilidades estéticas e espaciais que a obra oferece não só através do olhar, mas também do deslocamento do próprio corpo.

Através desse percurso, que eu espero que seja leve, prazeroso e estimulante, o espectador pode rever sua própria percepção espacial. Em um determinado ponto, ele se dá conta de que a obra atravessa a parede do prédio e se expande para o exterior, estabelecendo um espaço em flutuação (que chamo de "praças flutuantes"). O espectador, obviamente, não percorre o espaço externo de fato, mas o incorpora à sua experiência física e visual.

Clique para continuar lendo sobre o trabalho de Iole de Freitas!

Os materiais translúcidos, que se mostram rígidos, mas remetem à leveza e à flexibilidade, têm marcado forte presença nos últimos trabalhos, muitas vezes ligados à arquitetura do local.

Iole de Freitas
Iole de Freitas fala aos alunos de Belas Artes da Universidade de KasselFoto: Lars Roth/ documenta12blog.de

O meu trabalho prevê não só o deslocamento do espectador no espaço por indução da obra, mas também cria novas instâncias nos ambientes. São a luz, a transparência e a translucidez que geram tensões nos espaços, não o aço e o policarbonato. O trabalho com as placas de policarbonato também questiona os limites do equilíbrio de um corpo no espaço, seja o equilíbrio de um corpo de 200 quilos ou de duas chapas que se apóiam uma na outra de maneira improvável ao senso comum, seja o equilíbrio das chapas de nove metros suspensas no espaço externo a uma altura de 12 metros. Ou ainda o equilíbrio do corpo do espectador se deslocando no espaço.

Não considero essas placas rígidas. Elas possibilitam torções e curvaturas além do que se imagina. Para fazer isso com placas de um material plástico normalmente usado de maneira plana, reta e rígida, são necessários muitos cálculos e muita capacidade intuitiva. Mas o trabalho mostra que isso é possível. Foi assim que consegui construir um lugar que une leveza, luminosidade, dinâmica e acolhimento, além de permitir que o espectador investigue sua própria percepção visual.

De que forma a arte povera ainda se manisfesta nas suas instalações?

Acredito que o olhar de um artista interessado em estruturar a própria linguagem estética é bastante atento para poder arquivar o que corresponde às suas investigações e perceber a qualidade do que é apresentado à sua volta. É claro que houve uma sincronia que me influenciou. Mas não foi só a arte povera, que florescia vigorosamente quando comecei a apresentar meus primeiros trabalhos nas galerias de Milão, da Suíça e da Alemanha. Também havia as experiências em body art e os experimentos ligados à linguagem fotográfica.

No trabalho desenvolvido atualmente, talvez seja possível encontrar uma relação com a estrutura da linguagem da arte povera, na medida em que o processo e a matéria se apresentam na obra de maneira muito evidente.

A primeira fase de seu trabalho como artista plástica foi na Itália. Nos anos 1980, você resolveu retornar ao Brasil. Por quê? Quais as diferenças de trabalhar nos dois países? Por que você manteve o Brasil como seu local de trabalho?

Não voltei por questões profissionais e tive que enfrentar, então, a realidade que se apresentou a mim. Por um lado, a volta foi um desafio. Depois de ter um trabalho já encaminhado, se estruturando na Europa, com uma possibilidade de difusão muito maior, com textos críticos feitos por Vittorio Fagune e por tantos outros críticos da época, participando de grandes exposições coletivas em grandes museus, como o Frankfurter Kunstverein, decidir voltar significava me retirar fisicamente do campo de maior difusão do que eu estava produzindo.

Por outro lado, o Brasil ampliou a possibilidade de investigação do trabalho, que foi se afastando do registro bidimensional da foto e do filme – apesar de existirem, já nas propostas anteriores, situações de instalação durante a exposição das obras, dos filmes, das seqüências fotográficas.

No Brasil, respira-se um ar de experiências arquitetônicas muito vigorosas, desde o barroco, tão presente nas pequenas cidades de Minas Gerais, onde nasci, até as ocorrências magníficas de Oscar Niemeyer, os projetos de Paulo Mendes da Rocha e tantos outros excelentes arquitetos brasileiros. Juntamente com a possibilidade de fruir dessas grandes obras veio o estímulo da convivência com artistas contemporâneos da minha geração. José Resende, Waltércio Caldas, Tunga, entre outros, também mostravam grande acuidade na experiência com os materiais.

O Brasil trouxe um campo fértil para as investigações estéticas que eu vinha fazendo, apesar das dificuldades de inserção internacional quando se trabalha com arte num país do Terceiro Mundo.

Clique para ler o final da entrevista com Iole de Freitas.

Fridericianum Fassade – instalation Iole de Freitas 2
Chapas de policarbonato flutuam presas à fachada do FridericianumFoto: lole de Freitas

Assim como as suas instalações pretendem desconstruir idéias e certezas que temos em relação ao lugar que ocupamos no espaço e a nossa forma de lidar com ele, há uma parte (final) do trabalho apresentado na documenta 12, que desconstrói toda a obra – segundo a sua palestra na Universidade de Kassel.É papel da arte e do artista contemporâneo desconstruir?

Acho que a palavra desconstrução ficou muito sobrecarregada de significado. O que entendo é o seguinte: há uma proposta estética realizada em determinado espaço arquitetônico e público que oferece ao espectador – e ao próprio artista que a realiza – a condição de investigar outras possibilidades espaciais, outras percepções do próprio olhar e do próprio corpo, em relação àquele espaço. Quanto melhor o projeto arquitetônico, melhor para o trabalho.

Não há a idéia de desconstruir para demolir, a idéia é de repropor. Propor uma outra organização espacial que mostre a pluralidade de realidades estéticas passíveis de serem organizadas num determinado espaço. O meu trabalho busca abrir novas possibilidades para o olhar e para a percepção corpórea e não simplesmente desconstruir. A inclusão de uma nova realidade pode até ser encarada como desconstrução, mas o que se quer é construir uma outra instância espacial estética.

Em uma reportagem do Globo, você fala que o trabalho pretende tratar de leveza, transparência e luminosidade como uma outra forma de ver o mundo, mostrando que o mundo tem uma dinâmica suave. Onde está essa dinâmica suave de hoje? A arte deve tensionar as questões primeiras ou suavizá-las?

Acho que a arte pode fazer aquilo que ela quiser e é bom que o faça.

Ao observar a vitalidade do Oscar Niemeyer, por exemplo, com quase 100 anos e 27 projetos internacionais em andamento no seu escritório, eu pergunto: de onde vem esse vigor? De onde vem a leveza dessas construções? De onde vem, como ele mesmo diz, enxergar primeiro um projeto para depois verificar a viabilidade? E ele sempre encontra uma viabilidade técnica para as suas propostas arquitetônicas, que são lindamente elaboradas.

Como posso dizer que não existe leveza, se ela é materializada nessas linguagens? – Da mesma forma que é materializada em várias linguagens musicais no mundo inteiro, da mesma forma que é materializada na presença de pessoas que, de maneira discreta, anônima, percorrem as ruas da cidade onde eu moro, sustentando a dor das pessoas que não têm onde ficar e o que comer. Como é que eu vou dizer que não existe a leveza do ser? É lógico que tem.

Mais do que isso: acredito que a leveza vinga e cada vez se espalhará mais. Porque ela se apresenta no bojo cultural das pessoas que são, inclusive, extremamente politizadas como o Niemeyer. A suavidade não está vinculada a uma alienação política, absolutamente. Ela se instala no campo público e cultural para testemunhar e para quem quiser observar que é possível buscar outra maneira de viver.

A documenta 12 pretende investigar três questões: "O que é a vida nua?", "A modernidade é o nosso passado?", "O que deve ser feito?". Dentre essas, qual (ou quais) vocês acreditam investigar com o que está sendo preparado para o "museu de 100 dias"? Quais são as questões que a arte deve investigar nos dias de hoje?

Eu não sei se o trabalho responde diretamente a alguma dessas questões. É uma ponderação que eu gostaria de ouvir da Ruth e do Roger [a curadora Ruth Noack e o diretor artístico Roger Buergel]. A relação com a educação estética, proposta pela curadoria, é, sem dúvida, a questão que mais me interessa.

Acho que essa possibilidade de um outro entendimento do campo educacional que a arte pode propiciar a todos é uma questão extremamente estimulante. E acho muito interessante que a Ruth e o Roger tenham colocado isso como um dos conceitos que direcionam o trabalho da documenta.