Nem sempre é fácil dizer o óbvio. Mesmo porque, quando essa necessidade se impõe é fundamental entender as razões que estão por trás dela.
Mas o fato é que estamos enfrentando um retrocesso civilizatório.
Tenho muitas reservas às formas como o conceito de "civilização” é utilizado, mas não consigo ver uma expressão que sintetize o que o Projeto de Lei 1904/2024 representa: uma afronta às lutas e ganhos que nós, sociedade brasileira (sobretudo as mulheres brasileiras), galgamos nas últimas décadas.
O PL em questão tem como objetivo equiparar o aborto de gestações com mais de 22 semanas ao homicídio. Isso significa que mulheres que resolvam interromper suas gestações podem ficar presas por até 20 anos, inclusive mulheres cuja gravidez seja oriunda de um estupro.
Já os estupradores, quando são identificados, julgados e condenados, ficarão, no máximo, 12 anos na prisão.
O problema não para por aí.
Infelizmente, como bem sabemos, a prática do estupro anda de mãos dadas com a pedofilia. Isso significa dizer que um dos alvos principais do PL 1904/2024 são meninas, pobres e negras na sua maioria, vítimas de um duplo crime. Não basta passar pelo assédio e violação sexual (muitas vezes por homens da ou próximos à família), não basta ter uma gravidez indesejada – muitas vezes dificilmente identificada no início, pois as meninas demoram ou não entendem as mudanças de seus corpos –, é preciso dominar, vigiar e punir todas as instâncias da vida de meninas e mulheres.
E por mais perverso e hediondo que seja esse projeto de lei, não podemos nos enganar: ele revela uma das dimensões mais antigas da história brasileira.
O Brasil foi um território que nasceu do estupro. Em meio ao projeto de conquista e colonização levado a cabo pelos europeus que atravessaram o Atlântico, a violência sexual contra mulheres indígenas e mulheres africanas foi sistemático, a ponto de ser naturalizado na maneira como contamos os anos iniciais do contato entre europeus, povos originários e africanos. Como as primeiras agruras da colonização pareciam ser insuportáveis para as mulheres europeias, então coube às mulheres indígenas e africanas saciar o apetite sexual dos colonos, sem que isso necessariamente passasse por qualquer desejo delas.
Quando as mulheres europeias chegaram ao território que estava em colonização, elas se tornaram elemento importante da instituição que passou a governar essas terras: as famílias senhoriais. O fato de serem mulheres brancas lhes dava alguns privilégios, como a não escravização, mas não as protegia da violência cotidiana de seus maridos, pais e até mesmo filhos. Elas também estavam sujeitas ao estupro e outras violências domésticas, mesmo sendo senhoras.
Isso tudo para dizer que, durante séculos, a figura que detinha mais poder na sociedade brasileira, aquele que tinha o título de "senhor" (fosse de terras, engenhos e/ou escravos), reconhecia no estupro uma prática de manutenção e legitimação de poder. Isso não quer dizer que todos os homens brancos proprietários de escravizados eram estupradores (ou que todos os homens estupradores eram brancos, ou até mesmo que os homens não tenham sido vítimas de estupro). Mas é importante reconhecer que a figura que detinha poder político, econômico, social e moral, poderia sim recorrer ao estupro, e isso dificilmente seria um problema.
Há, nas entrelinhas de nossa história, um elogio ao estupro, sobretudo quando ele era realizado pelos patriarcas.
Essa mesma história que reserva aos homens (uns mais do que outros) a prerrogativa de serem os atores da violência sexual, sem que isso lhes causasse maiores problemas, está intimamente ligada à maneira odiosa com que as mulheres foram e seguem sendo tratadas por aqueles que contam nossa história.
As mulheres, todas elas, deveriam se submeter às vontades do patriarca e do patriarcado. E como era de se esperar, o tipo de submissão a que estavam sujeitas estava condicionado à sua pertença racial e socioeconômica.
Infelizmente, nós ainda estudamos a história e a sociedade brasileira a partir da perspectiva desse patriarca – do poder que ele exerceu e exerce, do tipo de família que ele defendia, das relações de trabalho que ele estabelecia, da forma como ele entendia ser o papel e o lugar das mulheres. O PL 1904/2024 chega para reforçar o lugar desse patriarca, desse tipo de família e, em última instância, da manutenção do poder nas mãos dos poucos de sempre.
Não basta rechaçar o PL 1904/2024. Precisamos entender que, infelizmente, o estupro é uma prática secular no Brasil e que precisa ser identificada, estudada e combatida, a começar por quem o pratica.
Não basta dizer que meninas não são mães e estupradores não são pais. Precisamos encarar de frente a urgência da descriminalização do aborto no Brasil, lembrando que hoje, em 2024, nós ainda somos um Estado laico.
A meu ver, o PL 1904 foi uma estratégia bem desenhada e executada pelas alas ultraconservadoras do país, para frear o debate mais amplo sobre o aborto e sobre o poder de decisão que as mulheres devem ter sobre seus corpos e suas vidas.
O crime que precisamos combater é o estupro e o ódio às mulheres.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.