EI mantém regime de terror em cidade líbia
18 de dezembro de 2015De olhos baixos e coçando freneticamente a cabeça, o homem está sentado num banco de tijolos improvisado do lado de fora de sua nova moradia. Só a luz mortiça de uma lâmpada quebra o breu da noite. Aqui em Misrata, ele e a família encontraram abrigo, depois que o filho foi morto por milicianos do "Estado Islâmico" (EI) em sua cidade natal, Sirte, também na Líbia.
"Ele só tinha 22 anos", lamenta o homem, recusando-se a dar mais qualquer informação sobre o rapaz ou os demais familiares, pelo temor de retaliações contra os parentes que ficaram na cidade. "Os milicianos nos impediram de fazer o funeral em Sirte, por isso estamos aqui."
Dezenas de pessoas vieram prestar suas condolências. A longa fila de homens vestindo os tradicionais mantos brancos é visível até aqui, no canto sombrio onde o pai em luto veio descansar um pouco dos dois dias em que vem recebendo os participantes dos ritos fúnebres. Ele está exausto: o filho mais velho acode para poupá-lo de narrar as vicissitudes da família.
"Em agosto passado, meu irmão desapareceu, e mandamos uma pessoa para procurá-lo." Na mesquita de Rabat – convertida desde junho num tribunal islâmico – e no centro de detenção do EI – antes um jardim de infância – os líderes do "Califado" inicialmente negaram tê-lo detido.
Somente após uma semana a família foi informada de que o jovem estava sendo mantido na prisão, sem que houvesse qualquer acusação oficial. "No fim de outubro, nos contaram que ele tinha sido executado."
Punições impiedosas
A morte do irmão não é o único pesadelo que aflige o primogênito da família. Segurando o ombro do pai, ele recorda as cenas finais antes da fuga de Sirte. Ele estava na Praça dos Mártires, o mercado de automóveis, quando duas ambulâncias chegaram em alta velocidade.
Sete homens vendados, de macacões alaranjados foram expostos no meio da praça. Cinco deles, estrangeiros de cor escura acusados de apostasia por terem fumado, receberam açoites nas costas. "Agora vocês estão limpos e são novamente os nossos irmãos de fé", pronunciou um dos combatentes, e os homens foram levados embora.
Os outros dois, líbios condenados por feitiçaria, foram primeiro submetidos à hijama, a sangria com ventosas recomendada no Alcorão, sendo depois forçados a se ajoelhar. "Era uma espécie de guilhotina improvisada", relata o líbio, ainda em choque. "Aí um homem mascarado com uma balaclava preta decapitou os dois."
Ao que tudo indica, tratava-se de Adel Hafez, com 50 e poucos anos, e do octogenário Saed Al Ma'dani, ambos adeptos do sufismo, seita mística islâmica rejeitada pelo EI. "Um amigo meu estava na primeira fila e viu o velho chorando como uma criança", sussurra, assombrado.
Avanço do "Califado" na Líbia
Localizada na costa central da Líbia, Sirte foi a primeira cidade fora de seus países de origem, Síria e Iraque, a ser ocupada pelos jihadistas do "Estado Islâmico" e declarada província do "Califado".
Localidade natal do ditador líbio morto Muammar Kadafi, Sirte foi primeiramente ocupada pelo grupo Ansar al-Shariah, afiliado à Al Qaeda, aproveitando o vácuo de poder em seguida à queda do regime, em 2011. O EI, então, explorou com sucesso as profundas divisões na Líbia, que haviam resultado na coexistência de dois governos, e assumiu o controle do Ansar al-Shariah.
Em fevereiro deste ano, centenas de guerrilheiros juraram lealdade ao assim chamado "Califado" de Bakr al-Baghdadi. A permeabilidade da fronteira no sul do deserto encorajou o afluxo de numerosos guerrilheiros do Mali, Somália e Sudão à cidade.
O grupo cresceu rapidamente, com líderes religiosos denominados "emires" do Egito, Iraque, Paquistão, Arábia Saudita e Iêmen chegando de barco e via Derna, até então a cidadela do EI na Líbia. O avanço do grupo terrorista em Sirte forçou as forças armadas de Misrata a recuarem para Abu Grein, a 140 quilômetros.
"Seis meses atrás, o EI reunia uns 300 combatentes e só tinha metralhadoras PKT, kalashnikovs e outras armas leves. Mas hoje eles têm artilharia antiaérea e bombas", relatou à DW Ibrahim Beit-Almal, vice-diretor do serviço de inteligência militar de Misrata.
Novo reduto jihadista
O circo de horrores em Sirte começou de verdade em agosto, quando a decapitação em público de 12 membros da poderosa tribo dos farjan deu fim brutal a uma insurreição local. O EI passou a impor sua versão radical da lei islâmica aos habitantes da cidade, banindo a música, forçando as mulheres a usarem o véu de corpo inteironiqab e crucificando os inconformes.
Os hospitais de Sirte estão totalmente nas mãos dos jihadistas. "Eles têm uma lista dos médicos e enfermeiras, e se alguém não aparece para trabalhar de manhã, vão revistar as casas deles", conta uma mulher que fugiu de Sirte para Misrata há alguns meses.
O "Estado Islâmico" introduziu um sistema de tributação severo, a fim de levantar fundos para sua administração. Bens subvencionados, como combustíveis, trigo e óleo não estão mais disponíveis na cidade, pois o "Califado" os está armazenando.
"O EI força os residentes a fugirem", afirma um professor que escapou de Sirte com a família em agosto. Somente 30% deles ainda permanecem, enquanto novas famílias vão tomando seu lugar. As esposas e filhos dos milicianos vêm se reunir a eles, vindos do exterior. "São muçulmanos do Paquistão, Somália e outros países. E cada homem tem duas ou três mulheres", conta o refugiado.
Segundo relatório recente do Conselho de Segurança da ONU, o grupo fundamentalista conta cerca de 3 mil combatentes em suas tropas, a metade dos quais está instalada em Sirte. Os principais comandantes também se retiraram para lá, depois que a aliança internacional anti-EI começou ofensivas aéreas maciças contra o núcleo do movimento, na Síria e no Iraque.