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Documenta 14 pelo olhar de Karim Aïnouz

14 de julho de 2017

Em Kassel, DW fala com cineasta brasileiro sobre a importância da Documenta para seu trabalho, como também sobre a ausência de artistas do Brasil na maior exposição mundial da arte contemporânea.

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Trabalhos da artista suíça Miriam Cahn na Documenta em Kassel coincidem com ideias de projeto do cineasta brasileiro
Trabalhos da artista suíça Miriam Cahn na Documenta em Kassel coincidem com ideias de projeto do cineasta brasileiroFoto: DW/Carlos Albuquerque

Na abertura da maior exposição da arte contemporânea mundial, realizada a cada cinco anos em Kassel, Alemanha, Karim Aïnouz, diretor de filmes como Madame Satã e Praia do Futuro, recentemente convidado a participar do júri do Oscar 2018, falou sobre as obras que mais o fascinaram e inspiraram, como também sobre a ausência de artistas brasileiros na 14ª edição da Documenta.

DW: Como cineasta, qual a importância de estar na Documenta: é algo inspirador?

Karim Aïnouz: É um prazer grande estar aqui, mais do que um prazer é uma inspiração enorme. Amanhã estamos indo embora, e eu já estou com saudades da Documenta, porque sempre se encontra uma série de obras que falam muito do nosso tempo e estão em sincronia com o trabalho que fazemos. Não é somente iluminador descobrir trabalhos que falam com a urgência que nosso tempo precisa, mas é também extremamente inspirador estar três dias quase que em outro planeta, viajando na inspiração de tantos artistas expostos aqui.

Desta vez, a Documenta não convidou nenhum artista brasileiro. Ao mesmo tempo, vê-se na mostra deste ano uma grande resistência ao processo de mercantilização da arte. Nota-se isso pela quantidade de trabalhos não comercializáveis, como performances e uma grande presença de vídeos. No Brasil, percebe-se que a resistência em alguns temas ligados a questões sociais se encontra hoje muito mais no cinema do que nas artes plásticas. Você concorda?

Eu parcialmente concordo. Acho que existem alguns coletivos no Brasil que nos últimos anos têm falado de questões mais urgentes. E que têm estado realmente no front das coisas que estão acontecendo politicamente. É um país que está em convulsão política há um ano, depois do golpe de Estado que foi dado contra a presidente Dilma.

Então acho que no Brasil há uma situação curiosa, porque se tem ao mesmo tempo um boom do mercado de artes plásticas, com o enriquecimento de certa elite que consome arte contemporânea. Tem-se o boom das galerias, o boom da arte como produto, uma explosão disso nos últimos dez anos, com a concentração de renda que se tem. E, ao mesmo tempo, há certa ausência de uma prática artística que seja uma prática crítica e que seja alimentada pela urgência de que o nosso tempo precisa.

Para Karim Aïnouz, visitar a Documenta é "um prazer e uma inspiração"
Para Karim Aïnouz, visitar a Documenta é "um prazer e uma inspiração"Foto: DW/Carlos Albuquerque

A gente vive num momento em que o mundo está bastante complicado politicamente, está bastante complicado economicamente, então eu sinto que é curioso, porque não se tem nenhum artista brasileiro este ano na Documenta. Ao mesmo tempo, olhando para o Brasil de uma maneira um pouco mais distante, vê-se que há uma série de artistas trabalhando ainda dentro de um cânone que é um cânone um tanto tradicional – do objeto, da beleza, enfim.

Acredito que seja importante pensar também que o Brasil é um país onde ainda existe um abismo social tão grande que o lugar de fala do artista plástico ainda é o lugar de fala da classe média, da classe média alta. E acredito também que, quando se mede o pulso do nosso tempo, no Brasil de fato o cinema e a própria televisão, que são artes mais populares, estão falando de questões mais urgentes.

E acho também que há uma geração muito ligada aos coletivos, ultimamente, e que está trabalhando dentro de uma perspectiva mais crítica, uma perspectiva talvez mais pop, mas acredito que ela talvez tenha sido um pouco ignorada pela curadoria desta Documenta.

Uma coisa curiosa é que há, na verdade, uma expressão geracional também nesta Documenta, no sentido em que há artistas que morreram ou são artistas da década de 1960/70, que tinham um trabalho político muito crítico; e se tem toda uma geração de artistas entre mais ou menos 30 e 50 anos, que é um pouco a geração do curador e dos curadores de assistência da mostra. Então eu acho que esta Documenta está falando de uma determinada geração, e acho que essa geração no Brasil está fazendo um trabalho que é de outra natureza.

Ao mesmo tempo, vi um trabalho agora de fotos que são documentações do coletivo Mídia Ninja sobre as últimas manifestações, de 2013, e que são muito impressionantes. Eu acho que existe ali um trabalho muito forte nesse sentido, mas talvez ainda não tão visível. E eu não sei se é uma obra que também cabe na galeria. Acho que talvez seja um trabalho que caiba mais nas instituições públicas, num museu, caiba mais em outras esferas de exposição do que na galeria, que é um lugar, de certa maneira, do produto.

Os trabalhos desta Documenta funcionam muitas vezes como links para temas, para culturas. Você acha que isso aponta para novos rumos da arte?

O que me encantou muito nos trabalhos aqui é o fato de eles serem, na verdade, documentos de pesquisa, relatórios de pesquisa, escavações de diferentes maneiras de se ler a história. Outra coisa que achei fascinante é que se tem, por exemplo, principalmente nos trabalhos de vídeo, de fato um interesse pela narração, mas uma narração onde você se apropria da própria história, onde você conta a sua história. E há uma coisa muito impressionante na questão pictórica: tem muito poucos trabalhos que lidam com a perspectiva clássica renascentista. São obras que trabalham com colagens, que lidam com sobreposição, com acúmulo histórico.

E também é uma Documenta que tem uma relação muito fascinante entre as obras e os lugares em que elas estão expostas. Uma coisa que talvez seja o maior tema desta Documenta é a estratégia de ressonância poética, que é uma maneira de se reimaginar o mundo, que também é narrativa, mas que é narrativa dentro de outra perspectiva, não uma perspectiva de causalidade, mas uma perspectiva de eco, de ressonância, de fibrilação.

Nota-se um abandono da questão da mídia, que não tem nenhum sentido. Tem-se um Partenon [Partenon de Livros, de Marta Minujín] construído com livros que foram banidos, então há aí uma reinvenção da própria matéria da arte. Então há, por exemplo, uma coleção de roupas, de capas de livro, de discos de um grande músico africano [Ali Farka Touré]. E se tem também um bordado [Historja, de Britta Marakatt-Labba] que conta a história da relação do horizonte dentro da perspectiva da cultura Sami, uma cultura autóctone do norte da Escandinávia.

Você tem histórias que são absolutamente invisíveis nos cânones oficiais e que estão contadas aqui de uma maneira absolutamente instigante.

Dentro desses trabalhos, quais você considera mais inspiradores?

Tem dois trabalhos que adorei ver e que ainda estou um pouco "digerindo". Há uma instalação que joga uma luz muito interessante sobre a questão do crime [Commensal, sobre Issei Sagawa]. Está na Tofufabrik, que era uma fábrica de tofu que havia aqui em Kassel. É sobre um japonês que morava na França na década de 1980 e que era um canibal. A obra mostra um pouco como ele está envelhecendo e um pouco como ele era antes, ainda criança. Isso joga uma luz no tópico da transgressão – dentro de um espaço que era uma fábrica de tofu, falando de um tema que era carne.

Mas acho que o trabalho que mais me encantou é o que se passa dentro de um lugar aqui na cidade que era uma antiga padaria, toda cercada de vidro, uma loja transparente que era provavelmente de um imigrante turco. E o trabalho é uma camada em torno disso, feito por uma artista libanesa [Nassib's Bakery, de Mounira Al Sohl] que conta a história de uma padaria no Líbano e que vai surpreendendo pela maneira como ela narra.

Essa instalação para mim, em particular, traduz uma série de coisas: ela traduz como se revisita uma história a partir do ponto de vista pessoal; como se traz o privado para dentro do trabalho; como se consegue, de alguma maneira, fazer uma obra que dialogue com a história do lugar onde está exposta; como se consegue, de fato, fazer um percurso estético onde, no final, se tem realmente uma coisa que no cinema a gente chama de pay-off, que são esses desenhos que estão expostos lá embaixo, com inscrições em árabe e que não se entende exatamente o que está escrito, mas isso não tem nenhuma importância.

Há algum trabalho que você diria ter a ver com projetos que quer fazer agora?

É curiosa essa pergunta. Tem um trabalho de uma artista plástica suíça [Miriam Cahn], que é fascinante. São umas pinturas abstratas, com uns corpos meio entre gêneros, não se sabe se são corpos de homem ou de mulher. São um tanto fantasmagóricos e se parecem com alienígenas, um misto de alienígena com fantasma. Eles têm algo sobrenatural e futurista e me lembram muito o personagem de um filme que eu estou fazendo com o Felipe Bragança, em que um alienígena fruto de uma experiência afro-russa no espaço volta para a Terra.

E foi uma loucura, porque a gente está pensando nesse objeto, nesse ser, nesse alienígena, querendo desenhá-lo e aí você entra numa sala da Documenta e tem uma artista que está fazendo umas figuras que são mitológicas, futuristas, assombrosas, fantasmagóricas, e que remetem exatamente ao filme que se está fazendo.

Tem outro trabalho também de um artista [Keviselie/Hans Ragnar Mathisen, da etnia escandinava] sami, que relaciona o Amazonas com o Polo Norte. Ele tem a ver exatamente com outro projeto que estou fazendo e que se passa nesses dois lugares do mundo. São lugares que se relacionam quase por oposição. Nesta Documenta, vejo que há uma série de temas que são temas do nosso tempo e que estão colocados ali de maneiras distintas. E é muito inspirador se deparar com eles.