"Diário de Anne Frank", um fenômeno inesgotável no Brasil
19 de julho de 2016Mais de 70 anos depois da morte de Anne Frank num campo de concentração, o diário que ela escreveu durante os anos em que passou escondida do regime nazista segue entre os livros mais vendidos do mundo. No Brasil, o relato da adolescente judia está há mais de cem semanas nas listas elaboradas semanalmente pela revista Veja e o jornal Folha de S. Paulo.
O sucesso é tamanho, que a editora Record já anunciou para o ano que vem o lançamento das Obras Completas – título publicado pela primeira vez no país, que reúne tanto os textos originais e incompletos de Anne, quanto a versão final do diário. Uma versão inédita em quadrinhos também será lançada.
"A obra completa de Anne Frank vai trazer para os brasileiros algo inédito: a tradução, feita diretamente do holandês, das duas primeiras versões do diário – a que Anne escreveu originalmente, e a que ela mesma editou depois de ouvir a notícia, pelo rádio, de que relatos pessoais seriam publicados em forma de livro após o fim da guerra. Além disso, trará a versão do diário que a Record já publica [editada por Otto Frank e Mirjam Pressler], só que agora traduzida diretamente do holandês", conta a editora executiva da Record, Renata Pettengil, responsável pela publicação.
Junto com as Obras Completas, a Record lançará também uma versão inédita do diário em quadrinhos – que ocorrerá simultaneamente em vários países do mundo – com ilustrações de David Polonsky, um dos autores da novela gráfica Valsa com Bashir e diretor de arte da versão cinematográfica dessa obra, que fala sobre o conflito entre Israel e o Líbano, em 1982, e o massacre das cidades de Sabra e Shatila.
"A edição em quadrinhos vem atender à demanda por um formato e uma linguagem com maior apelo entre os mais jovens e será uma nova porta de entrada para se conhecer o texto de Anne Frank", explica Renata. "É um projeto lindo, e estamos orgulhosos de fazer parte do grupo de editoras em todo o mundo que vão publicá-lo simultaneamente em 2017."
"Contos do esconderijo"
Anne Frank nasceu na Alemanha, em 1929, mas já no início dos anos 30, toda a família se mudou para Amsterdã, para fugir do regime nazista que se instalara no país. Em 1940, a Alemanha ocupou a Holanda.
Em 1942, com a Segunda Guerra já em andamento, a perseguição aos judeus aumentou, forçando a família Frank a se esconder num compartimento secreto do prédio onde o pai de Anne trabalhava. Junto com ela, sua irmã Margot, seu pai e sua mãe, Edith, havia ainda uma outra família e um homem, amigo das famílias. O grupo ficou escondido por dois anos, até 1944, quando foi traído e descoberto.
Da família Frank, Otto foi o único sobrevivente. E logo depois do fim da guerra, ele recebeu todos os escritos de Anne, que incluíam o diário de capa dura propriamente dito, um caderno e diversas folhas soltas.
O diário foi lançado pela primeira vez na Europa em 1950, poucos anos depois do fim da guerra. A própria Anne organizara uma versão editada do diário com vistas à publicação, enquanto ainda estava no esconderijo. E foi a partir dessa versão que seu pai trabalhou, suprimindo, sobretudo, passagens em que a menina era muito crítica em relação à família e trechos em que descrevia seu órgão genital e falava sobre sua crescente sexualidade – trechos que voltaram ao diário posteriormente.
De lá para cá, o livro foi traduzido para mais de 60 idiomas e, estima-se, vendeu em todo o mundo mais de 30 milhões de exemplares – colocando-o na lista dos livros mais vendidos de todos os tempos e transformando a jovem Anne numa das maiores vozes do Holocausto.
"Houve uma intenção de transformar o diário em livro desde o primeiro momento, pela própria Anne, e, depois um grande investimento de seu pai para que isso acontecesse", explica a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP, especializada no tema, que estuda o Holocausto a partir do testemunho dos sobreviventes.
A especialista reúne, desde 2006, relatos de sobreviventes do Holocausto que chegaram ao Brasil, bem como documentos relativos ao período. Entre eles alguns relatos em primeira pessoa.
"Mas o de Anne foi o primeiro a alcançar um público maior", diz. "Porque foi o primeiro a ser lançado, mostrando o drama dos judeus na ocupação da Holanda, e por ter sido escrito por uma menina, que vivia escondida num sótão, transformando-se num dos símbolos do Holocausto."
Material inédito ao público brasileiro
A narrativa dos diários, explica Maria Luiza, é crucial porque eles foram escritos num contexto de exclusão, de pessoas que ficaram escondidas. E, por meio deles, é possível reconstituir o cotidiano de pessoas que vivenciaram a violência premeditada pelo Estado.
"Os diários relatam esses cotidianos e, a partir desses textos, podemos reconstituir momento de solidariedade, de desespero, numa narrativa muito específica, escrita no calor dos acontecimentos", explica a historiadora, autora de Cidadão do mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos refugiados do nazismo, publicado, inclusive, na Alemanha.
O Diário de Anne Frank foi publicado no Brasil, pela primeira vez, em 1976, na versão censurada pelo pai da jovem escritora. Anos depois, no entanto, essa versão foi revista, e as partes censuradas, acrescentadas. Agora, no entanto, é a primeira vez que a Record lança no Brasil a versão original do diário – sem nem mesmo a primeira edição dada por Anne – junto com as outras duas.
Todos os chamados "contos do esconderijo", que Anne escreveu durante os dois anos em que viveu escondida num sótão em Amsterdã, também estão incluídos nessa obra, que traz ainda textos críticos, imagens de documentos oficiais, cartas e fotos; muitos deles inéditos para o público brasileiro.
"Será uma edição para quem quer ter toda a história de Anne em um só volume, para colecionadores, estudiosos e leitores ávidos para saber mais sobre essa menina especial, que inspira tanta gente", completou Renata Pettengil, da Record, responsável pela publicação.
O diário sempre esteve entre os livros mais vendidos do mundo, sendo, inclusive adotado por muitas escolas do ensino médio. Mas, recentemente, um fenômeno inesperado veio impulsionar ainda mais as vendas: o lançamento do best-seller de John Green A culpa é das estrelas (Ed. Intrínseca), de 2012, e, posteriormente, do filme baseado no livro, em 2014.
Na história de Green, a personagem principal é Hazel Grace, uma menina de 16 anos que sofre de câncer na tireoide com metástase no pulmão. Num grupo de apoio, Hazel conhece Augustus, um jovem em remissão de um câncer nos ossos e os dois se apaixonam perdidamente. Juntos, eles fazem uma viagem a Amsterdã, onde visitam a casa em que Anne Frank ficou escondida. Desde o lançamento do livro e do filme de Greene, o diário voltou à lista dos dez mais vendidos.
"O diário foi o meu primeiro contato com a literatura sobre a Segunda Guerra", conta a escritora Luize Valente, especializada no tema do Holocausto, autora de Uma praça em Antuérpia (Ed. Record) e que prepara agora Sonata em Auschwitz. "Anne vive uma realidade completamente diferente e especifica mas tem um caráter humano e universal com que todos se identificam. Ela vive rodeada pela morte, e o diário é o seu escape. E é mais ou menos isso que acontece também em A culpa é das estrelas, em que os personagens principais estão cercados pela morte. E o que nos toca, em ambos os livros, é que eles mantêm a esperança, a ingenuidade, o amor pela vida. Por mais que enfrentem uma situação terrível, eles não cultivam o ódio. Não perdem sua humanidade."