Divisão no esporte deve ser por gênero ou sexo?
1 de fevereiro de 2018O caso da jogadora Tiffany Abreu, a primeira transgênero a atuar na Superliga feminina de vôlei, vem causando polêmica. A recente contratação da atleta pelo Bauru, autorizada pela comissão médica da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), desencadeou um debate sobre a possível vantagem de uma transgênero, nascida homem, sobre as demais jogadoras e os critérios adotados em casos como esse.
Hoje o Comitê Olímpico Internacional (COI) permite a participação em competições de pessoas que passaram do gênero masculino para o feminino desde que sejam observadas algumas condições, como nível de testosterona abaixo de 10 nanomol/litro nos últimos 12 anos e que a atleta se declare como do gênero feminino há pelo menos quatro anos. Já para os transgêneros que fizeram a transição do feminino para o masculino não há qualquer restrição.
As regras, no entanto, podem variar de esporte para esporte, de organização para organização e de país para país. Segundo Eric Anderson, professor de esporte, masculinidade e sexualidade na Universidade de Winchester e um dos organizadores do livro Atletas transgêneros em esportes competitivos, essa é uma questão complexa. "A mera presença de atletas transgêneros questiona a divisão de gênero binária sobre a qual o esporte se estabelece."
Para o endocrinologista Guilherme Almeida Rosa, professor da Unirio e especialista de tratamento de transgêneros, um ponto-chave para discutir a questão é o critério para divisão dos times. "O vôlei é feminino, não de mulheres. É uma questão de gênero, não é só uma questão de sexo. Essa pessoa não pode competir no masculino porque ela é feminina, ela é uma transgênero feminino", afirma.
Regras justas?
Tiffany nasceu homem, mas hoje se identifica com o gênero feminino. Ela passou por cirurgia de adequação sexual e tratamento hormonal, isto é, a testosterona produzida por seu corpo foi bloqueada, e ela passou a utilizar o hormônio feminino estrogênio. Entre as mudanças provocadas pelo tratamento estão a diminuição da massa muscular e da força, a redistribuição da gordura corporal, o crescimento dos seios e o atrofiamento dos testículos.
Apesar de estar dentro das regras atuais, a participação esportiva de Tiffany não é consenso. Em dezembro de 2017, a ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel questionou em tuíte que tal permissão não seria justa porque Tiffany só começou o tratamento hormonal após a puberdade e, portanto, chegou a desenvolver características masculinas.
Segundo Almeida, o processo de feminização geralmente dura de três a cinco anos e, mesmo depois de concluído, isso não significa que o tratamento hormonal tenha que ser interrompido.
O endocrinologista explica que, apesar das mudanças provocadas pela terapia hormonal, características como a estrutura óssea não se alteram. No entanto, para afirmar que Tiffany levaria vantagem por ter mais resistência física e mais força, seria preciso apresentar dados e compará-los com a resistência e força física das demais jogadoras.
Nesse caso, se a força e resistência da atleta transgênero for superior, o especialista defende que ela passe por um período de adequação da sua composição corporal e das suas capacidades físicas, para além da regulação de testosterona.
A pesquisadora em antropologia social Barbara Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que há outros fatores, além dos hormonais, gerando desigualdades entre as atletas, desde amparo técnico e qualidade dos centros esportivos até alimentação e suplementos nutricionais. "É muito difícil para a própria literatura médica entender como tudo está envolvido, e não só o hormônio determina tal característica."
Anderson, por sua vez, entende que há justificativa científica para o descontentamento de muitas jogadoras cisgênero (pessoas que se identificam com seu gênero de nascença), mas problematiza: "Também não se pode falar que todas as mulheres cis tenham as mesmas vantagens. Afinal, não é o esporte o domínio em que celebramos os corpos mais incomuns?"
Na mesma linha, Almeida destaca o papel do esporte para a integração e inserção. "Ele é a celebração da diversidade e das diferenças. Tem muita gente falando em desigualdade, mas, na verdade, todos somos desiguais em algum ponto", diz.
"Se uma atleta está descontente por achar que é injusto uma trans poder competir contra ela, ela deveria parar e pensar sobre o quão injusta é a transfobia em nossa sociedade para as pessoas trans. Eu sinto muito que você se sinta desigual enquanto compete, mas as pessoas trans são desiguais 24 horas por dia", afirma Anderson.
Dificuldade de regulamentar
Segundo regulação do COI de 2015, "é preciso garantir tanto quanto possível que atletas trans não sejam excluídos da oportunidade de participar de competições esportivas". Tal entendimento serviu de base para que a contratação de Tiffany fosse aprovada.
De acordo com a regulação, que determina o limite de testosterona como requisito principal para elegibilidade de atletas transgêneros, o esporte objetiva garantir uma competição justa. Nesse sentido, defende que "restrições para participação são apropriadas na medida em que são necessárias e proporcionais para o alcance de tal objetivo".
A Federação Internacional de Voleibol (FIVB) se reuniu em janeiro de 2018 e manteve o entendimento do COI no que concerne a disputa de vôlei no nível internacional, mas deixou a cargo das federações de cada país decidir como regulamentar a questão nacionalmente. No Brasil, a instituição responsável por tais regras é a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV).
Pires destaca que a questão está longe de ser simples. "Para criar a resolução você precisa generalizar, e muitos desses casos são difíceis de generalizar, são casos muito diferentes um do outro", diz a pesquisadora.
Após os Jogos Olímpicos de Inverno na Coreia do Sul, a serem realizados neste mês na cidade de Pyeongchang, o COI prevê discutir o tema novamente, e as regulamentações poderão ser alteradas.
Debate deve continuar
Além dos transgêneros, Pires cita o exemplo dos intersexuais para exemplificar mudanças nas regras de elegibilidade esportiva. Ela estuda as regulamentações esportivas para intersexuais, ou seja, pessoas em que uma variação dos caracteres sexuais dificulta a identificação como feminino ou masculino.
Na década de 80, a atleta espanhola Maria Patiño tinha o aspecto físico de uma mulher, mas foi barrada num teste de verificação de gênero por apresentar cromossomos XY (sexo masculino).
"Ela processou para mudar a regulação, e aí foi-se percebendo que existiam casos em que, mesmo com os cromossomos sendo de um sexo, a pessoa poderia se desenvolver de outra forma por alguma variação do corpo. No caso de Patiño, ela não tem sensibilidade aos hormônios [masculinos], então tem um corpo feminino", diz.
O endocrinologista Almeida destaca como fundamental focar a inclusão. "Ninguém resolve virar transgênero, a pessoa é transgênero, isso não é uma opção para ela", afirma. "Assim como uma pessoa que nasce com hiperandrogenismo, ela também não tem hiperandrogenismo [distúrbio endócrino caracterizado pelo excesso de andrógenos, como testosterona] porque ela quis, ela não pode ser excluída do esporte por causa disso."
Pires destaca que os estudos científicos sobre o assunto ainda são insuficientes, e que o debate sobre as regras deve continuar. "Ao longo do tempo, com tudo que acontece de evolução técnica e científica, a gente vai avançando o pensamento e alterando nossas percepções."
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