Direito à blasfêmia: e quem é a vítima?
24 de fevereiro de 2006A polêmica mundial desencadeada pelas violentas reações de ativistas islâmicos contra a publicação de caricaturas de Maomé na imprensa dinamarquesa instigou um amplo debate sobre liberdade de expressão na Europa. Com exceção de alguns jornais – como o Le Monde, na França, e o Die Welt, na Alemanha – que, em nome da liberdade de imprensa, insistiram em republicar as caricaturas divulgadas no jornal damarquês Jyllands-Posten em setembro passado, a opinião pública européia não deixou de destacar a falta de tato de uma provocação supérflua contra o mundo islâmico.
No entanto, isso não seria motivo de restringir a liberdade de imprensa, uma conquista intocável das sociedades ocidentais. Como dizia o escritor e cômico bávaro Karl Valentin: "Democracia é bom, mas dá trabalho!" Em linhas gerais, esta pode ser considerada a tônica do debate.
Salvar Sade da fogueira
Sobretudo entre artistas e intelectuais, a defesa da liberdade de expressão é praticamente unânime. Na França, 11 escritores sintetizaram a reivindicação central, num manifesto divulgado pelo Le Monde (13/02):
"Somos escritores. Nossos horizontes são diversos, do mesmo modo que nossas origens geográficas, nossos vínculos sociais, nossas heranças religiosas, nossos destinos singulares, nossas convicções íntimas e – desculpem – nossas preferências sexuais."
"Não é difícil ver que, na guerra travada entre fanáticos cristãos norte-americanos e fanáticos muçulmanos do Oriente, é sobre os países laicos e moderados que fatalmente recaem cólera e frustração."
"Logo mais, nossa liberdade de publicar, na Dinamarca ou na França, nos será negada em nome do respeito a este ou àquele deus. Se permitirmos isso, logo se incendiarão as bibliotecas que abrigam obras de Voltaire, Sade, Ovídio, Omar Khayyam, Proust e outros. E é certo que, neste grande auto-da-fé, vão se reunir papas, grandes rabinos e grandes muftis."
O manifesto que reivindica a todos o "direito à blasfêmia" foi assinado por Salim Bachi, Jean-Yves Cendrey, Didier Daeninckx, Paula Jacques, Pierre Jourde, Jean-Marie Laclavetine, Gilles Leroy, Marie N'Diaye, Daniel Pennac, Patrick Raynal e Boualem Sansal.
"O Diabo é aquele que separa"
No manifesto francês, a advertência histórica destilada dos recentes acontecimentos é a dos autos-da-fé religiosos, da caça às bruxas e também da queima de livros por parte dos nazistas alemães. Quanto ao último caso, os escritores franceses se perguntam se teria mesmo valido a pena tratar os alemães com moderação depois da Primeira Guerra:
"Os mais velhos entre nós sem dúvida terão a sensação de déjà-vu. Parece que, na época do Acordo de Munique, os espíritos finos não queriam humilhar o povo alemão, ferir seu orgulho de grande nação derrotada em 1918, etc. Curiosa a consideração que tivemos com nossos irmãos alemães, deixando-os cair nas mãos de um poder que os oprimiu, os lançou em guerras sem fim, os conduziu a atos imundos, tornou-os primeiro monstros e depois vítimas, os diabolizou, os cortou em dois pedaços, literalmente, pois o Diabo é Aquele que separa."
Liberdade de imprensa, onde?
O interessante é notar que a acusação – explícita ou implícita – de nazifascismo se inverte no veredicto de dois dos mais conhecidos escritores alemães: Günter Grass e Botho Strauss.
Para o Nobel da Literatura Grass, um social-democrata militante e incansável ativista de mil e uma causas políticas, a liberdade de imprensa já é uma causa perdida no Ocidente, sob a qual ninguém mais encontra proteção:
"O Ocidente tem discutido o princípio de que gozamos do direito à liberdade de imprensa. Mas quem não estiver querendo se enganar sabe muito bem que os jornais vivem de anúncios e acatam o que é ditado por certas forças econômicas. A própria imprensa faz parte de enormes grupos empresariais que monopolizam a opinião pública. Perdemos o direito de buscar proteção no direito à liberdade de opinião. Mas os tempos da ofensa da majestade ainda não passaram e não deveríamos esquecer que existem lugares que não conhecem a separação entre Estado e Igreja. De onde o Ocidente tira a arrogância de querer determinar o que se deve fazer ou não?"
Grass prossegue: "Recomendo a todos observar com atenção as caricaturas. Elas lembram o famoso jornal da época nazista, o Stürmer. Lá se publicavam caricaturas anti-semitas no mesmo estilo. Não se pode recorrer ao direito de livre expressão da opinião, sem analisar como as coisas são no Ocidente".
Em entrevista dada ao jornal El País (09/02) e reproduzida pelo diário Die Welt, Grass também qualificou a onda de violência desencadeada no mundo islâmico como um ato fundamentalista em reação a outro ato fundamentalista, ressaltando a orientação extremista e xenófoba do jornal dinamarquês que publicou as caricaturas e detonou o conflito.
Este é só o prelúdio
Já Botho Strauss, um escritor da geração de 68 que durante muito tempo não deixou dúvidas quanto à sua afinidade com a esquerda, também questionou se a liberdade de opinião deve ser ilimitada. Para o dramaturgo, ensaísta e prosador Strauss, esta liberdade já termina com resguardo da pessoa: "Não há por que esta proteção não ser estendida para a esfera sagrada, sem que se coloquem em jogo os direitos democráticos básicos".
Na verdade, Strauss submete a liberdade de imprensa à liberdade de religião: "Os indiferentes religiosos já não vivem mais apenas entre si neste país. A violação de sentimentos sagrados passou a ter um significado diferente do que tinha na antiga Alemanha. Isso deveria ser criminalizado, assim como a violação da honra". Aqui o escritor não está defendendo exatamente a pluralidade religiosa no país, mas apenas se conformando com o prognóstico de que no futuro as sociedades européias vão ser dominadas por muçulmanos. O que está se configurando agora é o que ele denomina uma "sociedade preparatória".
"Fúria contra o que é nosso"
Acusado, entre outras coisas, de propagar uma visão apocalíptica da futura sociedade multicultural na Europa, Strauss voltou a gerar grande polêmica na imprensa alemã com tais opiniões, expressas num artigo recente à revista Der Spiegel (13/02). Só que, ao contrário de Günter Grass, que jamais deixou dúvidas quanto à sua orientação política e partidária, Strauss já inspira uma certa desconfiança entre os intelectuais de seu país.
Em 1993, Botho Strauss chocou a opinião pública com a publicação de um controverso ensaio (Anschwellender Bocksgesang) em que se autodenominava direitista, condenando o que chamava de "convenção sufocante e saturada do protestantismo intelectual". Na época, ele perdeu a credibilidade por criticar os intelectuais propagadores de uma sociedade multicultural, afirmando que "eles são amigáveis para com o outro, não por causa do outro, mas porque sentem fúria contra o que é nosso e acham bem-vindo tudo aquilo que o destrói".
Sempre em torno do nazismo
Botho Strauss não foi o primeiro, nem o último, a manifestar essa revolta contra a autopunição coletiva alemã, uma forma de elaborar o passado nazista que marcou sobretudo a geração crescida no pós-guerra. Em seu livro de ensaios Paare, Passanten (Pares, Passantes, 1981), Strauss constata que, para ele, "envelhecer significa se mover em círculos de memória cada vez maiores em torno do nosso singular lugar de nascença, o nazismo alemão".
E prossegue: "A distância aumenta, mas jamais conseguimos romper este destino concêntrico. Para aqueles que nasceram dos excessos deste século, não haverá nenhuma fase da vida em que não se posicionem internamente em relação a esta origem, que é o verdadeiro centro secreto, sim, a prisão de todos os seus esforços intelectuais (e psíquicos)".
Esta parece ser a motivação dos escritores alemães desta geração em buscar o erro nas próprias atitudes, ou seja, no Ocidente, antes de acusar os outros. Grass (1927) viveu conscientemente a guerra e Strauss (1944) cresceu no pós-guerra. Grass gerou indignação com o romance O Tambor (1959), sendo acusado de blasfêmia e pornografia, e Strauss se sente até hoje vítima da patrulha ideológica atéia. Apesar de já terem apelado ativamente para o direito de liberdade de expressão em defesa de sua obra, eles parecem mais preocupados em rechaçar a identificação com atitudes segregacionistas.