Desinformação dificulta doação de órgãos no Brasil
16 de outubro de 2024
"Minha trajetória é marcada por desafios, superação e, acima de tudo, gratidão ao gesto de amor que salvou minha existência. Vivo com um rim transplantado, e desde então, aproveito cada dia como se fosse o último", conta Alexandre de Souza Soares, de 50 anos.
O consultor de projetos, natural de Minas Gerais, está entre os milhares de brasileiros que tiveram a chance de recomeçar a vida após receber um transplante. Ele conta que, em alguns momentos, desconfiou se encontraria um doador compatível. Fez oito meses de hemodiálise até, finalmente, ser submetido ao transplante.
Compartilhando do mesmo sonho, mais de 65 mil pessoas esperam atualmente na fila do Ministério da Saúde por um órgão. No entanto, casos como o de Alexandre Soares podem estar ameaçados por uma onda de desinformação sobre o procedimento.
Durante o primeiro semestre de 2024, mais de 45% das famílias se negaram a doar órgãos de seus parentes após o falecimento, segundo dados são da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). É um dos piores percentuais de recusa já registrado no país. Houve uma queda de 4,9% em relação ao ano passado.
A taxa de rejeição varia entre os estados. O Paraná registra a maior aceitação quando o assunto é transplante, com apenas 25% de recusa no processo de doação. No Acre, esse número chega a 77%. No país, a transplantação de órgãos e tecidos acontece apenas com a autorização familiar, mesmo que a pessoa tenha deixado uma declaração em vida de doadora.
"O principal motivo da rejeição é o desconhecimento e a falta de informação. Sem contar que existe a falta de preparo de alguns profissionais da saúde para fazer esse atendimento humanizado e técnico. Sempre vai existir a recusa. O ideal que a taxa fosse zero, mas trabalhamos com uma meta de 20%", explica Tadeu Thomé, membro do Departamento de Coordenação em Transplantes da ABTO.
Fila de espera
O rim é órgão com a maior fila de espera, com 40 mil brasileiros na lista. A taxa média de espera é de 18 meses. O fígado é o segundo órgão mais buscado, com 2,3 mil pessoas na fila. Logo em seguida, o coração, com 404 pacientes aguardando. Entre eles, 44 crianças de até dez anos. Somente entre janeiro e junho deste ano, 1,7 mil pessoas morreram no Brasil enquanto esperavam por um transplante.
E o cenário de desconfiança tende a piorar ainda mais após casos como o do Rio de Janeiro onde seis pacientes transplantados receberam órgãos infectados pelo vírus HIV, em caso sem precedente no Sistema Público de Saúde (SUS). Os órgãos infectados vieram de dois doadores.
Os testes foram feitos em um laboratório privado e contratado pela Fundação Saúde, sob a responsabilidade da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, para atendimento ao programa de transplantes no estado. Segundo as investigações da Polícia Civil, que vieram a público nos últimos dias, representantes da empresa reduziram o controle de qualidade para ampliar os lucros.
"É um acontecimento péssimo, porque abala a confiança no sistema de saúde e enfraquece nossa reputação, que tanto lutamos para construir. O Brasil é referência mundial no transplante de órgãos e precisamos continuar com a mesma qualidade", avalia Carlos Henrique Boaskevisque, ex-chefe da cirurgia de tórax da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referência em transplantes
Apesar da desconfiança por parte da população, o Brasil é referência mundial na área de transplantes. Somente no primeiro semestre de 2024, 4,5 mil órgãos, além de 8,2 mil córneas e 1,5 mil medulas ósseas foram transplantados pelo Sistema Público de Saúde (SUS). Em números absolutos, o país fica atrás apenas dos Estados Unidos.
Boaskevisque cita a importância dos resultados positivos para conscientizar a população sobre o tema. O conhecimento amplia as chances de doação, segundo ele.
"Precisamos difundir a credibilidade do nosso sistema de transplante de órgãos no Brasil, mostrando a quantidade de pessoas que são salvas anualmente com os procedimentos. Fazer muita publicidade sobre o tema", pontua o médico.
Além de campanhas sobre o tema, ele reforça a necessidade de um treinamento mais aprofundado para médicos e enfermeiros para ampliar a taxa de doação. "Eles representam o primeiro contato com as famílias e devem explicar os processos de forma correta e assertiva. Na maior parte dos casos, os familiares estão dispostos a doar os órgãos do parente. No entanto, ficam apreensivas quando não recebem explicações claras", finaliza Boaskevisque.