Desastres ambientais elevam número de deslocados no Brasil
15 de maio de 2024Em 2010, Nedine Beauger perdeu sua casa no terremoto em Porto Príncipe, no Haiti, e se tornou uma entre um milhão de desabrigados no país. Morou entre abrigos e ruas por dois anos, até que em 2015 decidiu emigrar para o Brasil. Em contato com uma comunidade de haitianos no Facebook, escolheu Porto Alegre. Aos 42 anos, mãe solo de uma filha de 5, ela se vê mais uma vez sem casa, mas agora longe da família, atingida pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul.
"Foi difícil recomeçar no Brasil, saía para procurar trabalho sem falar português. Agora perdi tudo de novo, não sei para onde poderei ir", conta a haitiana, que morava no Sarandi, um dos bairros mais afetados pelas chuvas em Porto Alegre.
Hospedada na casa de um amigo haitiano depois de cinco dias num abrigo com a filha, Beauger faz parte dos mais de 600 mil deslocados pelas inundações no Rio Grande do Sul. O total não está distante dos 745 mil deslocamentos por desastres registrados em todo o ano de 2023 no Brasil, segundo relatório anual da organização não-governamental Observatório de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), divulgado nesta terça-feira (14/05).
Os números do IDMC são os mais altos para o Brasil desde o início dos registros, em 2008, e se referem a deslocamentos, não necessariamente a indivíduos, que podem se deslocar mais de uma vez. Em 2023, os deslocamentos foram causados sobretudo por chuvas no Amazonas, Pará, Acre e Maranhão e nos três estados da região Sul. No ano passado, o mundo também bateu recorde de deslocamentos por desastres: foram 26,4 milhões causados por inundações, deslizamentos, secas e queimadas, de acordo com o observatório.
Sejam desalojadas, caso de quem tem moradia temporária em outras casas, ou desabrigadas, essas pessoas não são refugiadas climáticas, porque não cruzaram as fronteiras nacionais, sustenta Andrea Pacífico, coordenadora desde 2012 do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais da Universidade Estadual da Paraíba.
Deslocados invisíveis
A pesquisadora lembra que não existem tratados internacionais para a proteção daqueles que costumam ser denominados "refugiados ambientais", termo usado pela primeira vez por um especialista do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 1985. Mas muitos países, como o Brasil, têm legislações com um entendimento ampliado para solicitações de refúgio ou de visto humanitário, que foi concedido, por exemplo, a muitos haitianos após o terremoto de 2010.
"Os estrangeiros que chegam ao Brasil por desastres naturais têm os direitos garantidos pela Lei de Migração de 2017, mas os deslocados internos ainda são invisíveis. Falamos desalojados, desabrigados, removidos", afirma Pacífico, que é professora de Relações Internacionais.
Ela ressalta que, apesar da ausência de tratados internacionais e da diferença entre refugiados e deslocados, o próprio Alto Comissariado da ONU Para Refugiados (Acnur) auxilia deslocados internos. "Se o Brasil passar a usar o termo, terá que responder internacionalmente por essas pessoas."
Com foco na proteção específica dessas populações, a deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP) apresentou no dia 7 de maio um projeto de lei que cria a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos. Ele já ganhou a coautoria de 20 deputados, com o objetivo de pressionar o Congresso por uma tramitação de urgência.
Também no dia 7, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de 2022 que dá prioridade a vítimas de desastres ambientais para a compra ou reconstrução de moradias no programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. O texto agora segue para o Senado.
Já no projeto de lei apresentado por Hilton, o acesso a moradia para deslocados ambientais é mais amplo, sem estar vinculado a um programa. O texto prevê ainda a alteração da CLT para dar estabilidade de dois anos aos deslocados ambientais.
Problema de definição e acesso a dados
O novo projeto de lei começou a ser gestado há dois anos pela ambientalista Naira Santa Rita Wayand após ela perder sua casa com inundações e deslizamentos em Petrópolis, município do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2022. No ano passado, Wayand fundou o Instituto DuClima, que participou da elaboração do projeto junto com o Instituto Marielle Franco e a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama).
"Meu apartamento era no primeiro andar, não ficava em área de risco, e a água chegou até o segundo. Enquanto isso, o Morro da Oficina ia abaixo", lembra ela, que se mudou com a mãe e o filho de 2 anos para Juiz de Fora, em Minas Gerais.
Wayand contou com a ajuda de seu empregador para se instalar em Juiz de Fora, onde a mãe fazia tratamento de saúde. Enquanto isso, percebeu uma grande alta de preços dos aluguéis em Petrópolis, o que chama de "capitalismo de desastre". "Não saí porque quis, mas porque fui forçada. Mas no meu caso, como todos os outros dos últimos 20, 50 anos, não houve auxílio do Estado", afirma.
Como ativista, Wayand defende o uso do termo "deslocados ambientais", mas reconhece que falar em "refugiado ambiental" causa comoção e muitas vezes é usado para a mobilização política, como fez a própria divulgação do projeto de lei.
Além do problema de definição, o acesso a dados comparativos é dificultado pela variedade de desastres e diferentes metodologias. A seca, por exemplo, não costuma ser considerada causa de deslocamentos no Brasil, afirma Andrea Pacífico, que tem pesquisa sobre o sertão do Nordeste.
"Meu pai e mãe são do sertão de Alagoas, sempre ouvi sobre as dificuldades dos sertanejos. Eles não têm nada de retirante. São forçados a migrar por sobrevivência", diz ela, que há três anos faz pesquisa de campo com deslocados por barragens na Paraíba.
De acordo com Ricardo Fal-Dutra Santos, coordenador regional do IDMC para as Américas, Europa e Ásia Central, como a seca é um desastre de evolução lenta, é mais difícil identificá-la como causa de deslocamento. Ainda assim, o relatório do observatório aponta 32 mil deslocamentos devido à seca na Amazônia em 2023, contra 700 em 2022. "É um aumento significativo", afirma. "O que continua uma lacuna para nosso entendimento são os números baixos de deslocamentos por queimadas, que sabemos que ocorrem, mas não se refletem nos dados no Brasil."
Natureza cíclica
De acordo com Santos, para a adoção de políticas públicas, é importante notar que os desastres têm uma natureza cíclica. No Rio Grande do Sul, a gravidade de enchentes anteriores foi desconsiderada, e famílias atingidas continuaram nos mesmos lugares que foram novamente destruídos, em intensidade muito mais forte. Agora, cidades inteiras do Rio Grande do Sul terão que ser reconstruídas, como Eldorado do Sul, Lajeado e Muçum.
Morando desde 2013 em Eldorado do Sul, Giancarlo Ugalde viveu duas temporadas de fortes chuvas em 2023. Em setembro, a cidade não foi alagada. Em novembro, os bairros mais baixos foram inundados, mas sua casa ficou protegida. Quando as chuvas das últimas semanas começaram, ele e a mulher, que pretendiam se mudar por conta de uma proposta de trabalho, apressaram a transferência para Sertão Santana com a filha de 4 anos. A casa nova já é abrigo para diversos de seus parentes de Eldorado do Sul, que foi completamente inundada.
"Os padrinhos da minha filha e os pais da minha comadre estão aqui porque perderam tudo, a água chegou até o teto. Um tio perdeu a casa e a empresa", conta Ugalde, de 41 anos. "Retornamos no sábado para ver nossa casa porque o rio recuou, mas é um cenário de guerra, a cidade toda ficou debaixo de água. Tem muita sujeira, cheiro horrível. Mesmo que alguém possa voltar para casa, não tem mercado, não tem padaria, não tem nada. A cidade vai ter que nascer de novo. Quem tem a possibilidade de não voltar para Eldorado não vai voltar."