Deputadas trans querem atuar além da pauta LGBTQ
5 de outubro de 2022Em 1992, o Brasil elegeu pela primeira vez uma travesti para um cargo político. Vereadora por três mandatos e depois vice-prefeita de Colônia do Piauí, no sertão piauiense, Kátia Tapety se lembrava do que dizia o pai, que a impedia de ir à escola: "Homem que vai ser veado tem que morrer". "Se a gente não estiver lá, não iremos defender nossas pautas e alcançar o que queremos. A gente tem que falar pela gente. Por isso devemos disputar, sim, todos os lugares que tiver", disse Tapety em maio deste ano em evento no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para o lançamento da Escola de Formação Política Kátia Tapety, batizada em sua homenagem.
E foi apenas 30 anos depois da conquista da piauiense que duas mulheres trans conseguiram espaço no Congresso Nacional. No domingo (02/10), São Paulo elegeu como deputada federal, com 256.903 votos, Erika Hilton (PSOL-SP), mulher travesti e negra e a vereadora mais bem votada do Brasil em 2020. A professora e ambientalista Duda Salabert (PDT-MG), primeira vereadora trans de Belo Horizonte e a mais bem votada na capital mineira em 2020, conquistou o cargo de deputada federal, com 208.332 votos, depois de fazer uma campanha sem panfleto, adesivo, papel ou bandeira.
E o que prometem as primeiras deputadas trans da história?
"Enquanto parlamentares trans, não atuaremos apenas nas pautas de nicho. Nunca fizemos isso. Vamos falar sobre direitos LGBTQIA, de mulheres, pessoas negras, jovens, mas vamos falar também de economia, meio ambiente, combate à fome, universidade pública e ciência. Vamos legislar para todos, não para nossos grupos, apenas", detalhou Hilton em entrevista à DW.
"Mesmo com ataques de setores da esquerda, ataques dos ciristas, ameaças de morte da ultradireita, vencemos!", escreveu Salabert no seu perfil de campanha no Instagram. No fim de semana, a então candidata votou protegida por um colete à prova de balas em Belo Horizonte.
As principais pautas das apelidadas "deputravas" passam também por desmatamento zero e política de preservação do Cerrado, criação de uma política nacional de redução de agrotóxicos, geração de emprego e renda, criação de um programa nacional de combate à violência LGBTFóbica, ampliação das cotas, taxação de heranças e grandes fortunas, e renda básica permanente.
"Nossa perspectiva é fincar bandeiras das pautas que nos levaram até o Congresso e apresentar debates e projetos que nunca antes tiveram espaço no Poder Legislativo brasileiro. Se, por um lado, muitas pessoas de extrema direita se elegeram, por outro, a bancada de esquerda também cresceu", opina Hilton.
Capacidade de articulação
Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), diz que é cedo para falar em "bancada trans".
"Temos duas únicas travestis naquele espaço extremamente violento. Embora ambas sejam altamente qualificadas e estejam preparadas para os desafios postos, a Câmara Federal está tomada por uma ideologia reacionária, antidemocrática e antipovo. Mesmo em alianças com outras parlamentares do campo progressista ainda estaremos em desvantagem", analisa. "As pautas LGBTQIA não serão postas de forma transversal, já que nenhum partido até hoje colocou como prioridade."
Primeira mulher trans na ativa da Marinha do Brasil, Benevides pondera que a atuação ampla de Hilton e Salabert, sem focar em uma única pauta de nicho, irá "promover mudanças necessárias e significativas" e trazer "esperança, apesar do cenário completamente violento movido a machismo, transfobia e racismo".
"Elas trazem consigo a denúncia explícita de como a transfobia tenta nos paralisar, mas seguimos vivas, umas nas outras. Naturalizar pessoas trans naquele espaço é um ponto importante no enfrentamento das injustiças", afirma Benevides à DW.
Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que há "muitos projetos de lei de ótima qualidade em relação à cidadania de pessoas trans e LGBT de modo geral" na Câmara, mas que não avançam, devido ao bloqueio dos setores fundamentalistas religiosos, que têm poder de veto significativo.
O especialista em direitos da população LGBTQIAP+ considera que a eleição de duas deputadas trans e ativistas, com quantidade significativa de votos, "evidencia reconhecimento do trabalho político e uma mentalidade mais aberta para entender que corpos trans podem ocupar esses espaços".
Segundo levantamento feito pela plataforma VoteLGBT, 18 candidaturas LGBT foram eleitas neste ano - quatro para a Câmara dos Deputados e 14 para as assembleias legislativas dos estados. "Essa tendência vai depender de os próprios partidos combaterem a transfobia internamente, dando respaldo a essas candidaturas e financiamento, além de proteção diante de uma série de ameaças", complementa Quinalha.
Ocupar espaços
Agatha Pauer, de 19 anos, primeira secretária do Conselho Municipal de Saúde de Cabo Frio (RJ) e influencer digital, vê a possibilidade de melhor qualidade de vida da população trans com a atuação das duas deputadas eleitas.
"Isso é sobre retomada de pertencimento ao nosso país. É sobre ocupar espaços hegemônicos que são consolidados para expulsar os nossos corpos, tendo em mente que a idade mínima para alguém se candidatar à Presidência da República no Brasil é a mesma que a nossa expectativa de vida, de apenas 35 anos", explica.
Segundo a ANTRA, 140 travestis, mulheres transexuais, homens trans e pessoas transmasculinas foram assassinadas no país em 2021, um aumento de 141% em relação a 2008, quando começou a série histórica. O dossiê mostra que as travestis e transexuais femininas estão mais expostas à morte violenta e prematura, com uma expectativa de vida de apenas 35 anos no Brasil.
"É na política que vamos combater as transfobias institucionais, como a utilização dos banheiros públicos, onde somos violentadas moralmente e fisicamente. Pessoas trans são expulsas dos espaços escolares, como se varressem das escolas os nossos corpos", critica Pauer, que é travesti e negra.
"Agora estamos projetando possibilidades para, no futuro, ocupar o Senado, governos estaduais e, quem sabe, a Presidência da República. Vejo possibilidade de qualidade de vida e de assegurar um melhor desempenho acadêmico e emprego para que pessoas trans não estejam destinadas apenas a ocupar a prostituição", finaliza.
Estimativas da ANTRA mostram que 90% das travestis e transexuais estão na prostituição no país. "Chegando a esses espaços de visibilidade e debate público, mostramos a centenas de milhares, milhões de pessoas negras, travestis, transexuais, pessoas LGBTQIA, de maneira geral, e jovens que não existe apenas o caminho do cárcere, da violência, da pobreza e da prostituição compulsória", explica Hilton. "Há outras possibilidades para nossos corpos. Queremos inspirar mais e mais pessoas a ocuparem esses espaços de poder e todos os outros."