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Butô e 'Ausdruckstanz'

19 de junho de 2009

Teatro-dança de vanguarda, o butô se inspirou na "Ausdruckstanz" e em outras modernas tendências europeias. Continua aberto a influências e (re)assimilações, 50 anos depois, da capoeira à música pop.

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Butô em Seattle, EUA (grupo Death Posture)Foto: AP

A peça Hibiki – Resonance from far away, da companhia japonesa Sankai Juku abriu o In Transit 09, festival de dança, teatro e performance contemporâneos que se realiza na Haus der Kulturen der Welt de Berlim. Fundado por Ushio Amagatsu, o grupo é um dos mais celebrados representantes do teatro-dança butô.

"Amagatsu está para a botânica como Pina Bausch está para a psicologia. Ele tira sua inspiração das menores variações de textura e tonalidade das plantas, assim como Bausch explora as emoções buscando seus paralelos no movimento." Assim o jornal International Herald Tribune definiu o trabalho do coreógrafo e dançarino nascido em 1949.

A comparação é inesperada, porém pertinente. Pois enquanto a dança clássica ocidental, e mesmo certas vertentes da dança contemporânea, são a glorificação do corpo humano, sua elevação até o divino, o butô procura o mais profundamente humano a partir do que está além/aquém dele – no animal, vegetal, mineral ou no sobrenatural, o mundo dos espíritos.

Haus der Kulturen der Welt Hibiki 2
Sankai Juku: HibikiFoto: Haus der Kulturen

Rompendo a camisa-de-força da tradição

Corpos embranquecidos com pó-de-arroz japonês, lentidão sobre-humana, delicadeza e ternura beirando o kitsch, estertores, esgares, convulsões, morbidez, posturas corporais extremas, seminudez, sugestões de sangue, morte...

Tão fácil é enumerar o repertório de formas do butô quanto é duro definir satisfatoriamente essa arte corporal. Pois ela se originou e habita nos interstícios entre os conceitos – morto-vivo, belo-horrendo, masculino-feminino –, na superação de gêneros e dualismos.

O movimento nasceu no pós-guerra, em meio aos protestos estudantis no Japão. Michael Haerdter e Sumie Kawai, autores do livro Die Rebellion des Körpers (A rebelião do corpo), chamam a atenção para o processo de americanização – uma dependência com componentes "não apenas político-econômicos, mas também psicológicos" – que tomara o Japão – "um país de contradições" – após a Segunda Guerra Mundial.

Na dança, um inimigo era a modern dance, com sua fixação na pura forma. E o cultivo das artes cênicas tradicionais japonesas era percebido como uma camisa-de-força, feita de movimentos e gestos preservados e repetidos com minúcia pelos séculos adentro.

Os impulsos decisivos para romper com esse estado de estagnação artística partiram da Ausdruckstanz alemã. Interessante notar que a dança expressionista desenvolvida nas décadas de 1920-30 por Mary Wigman e seus discípulos Harald Kreutzberg e Gret Palucca também se originara da revolta contra o balé clássico. E, para tal, seus criadores igualmente recorreram a influências "exóticas".

Dura como a Alemanha

Já em 1936, Kazuo Ohno (nascido em 1906) estudara com um aluno de Wigman. Tatsumi Hijikata (1928-1986), o outro pai do butô, interessara-se no final da guerra pela "dança estrangeira". Ele logo confirmou que aquilo que procurava vinha da Alemanha. "Eu havia registrado que – já que a Alemanha era dura – essa dança também devia ser dura."

Uma peça de Hijikata – Kinjiki (Cor proibida), de 1959 – é considerada o nascimento do butô, antes mesmo de o termo ser cunhado. Baseada num romance de Yukio Mishima, ela tratava de homossexualismo e pedofilia, tabus absolutos para a boa sociedade japonesa.

Até hoje ainda paira a polêmica se a galinha simbolicamente sodomizada por Yoshito Ohno era estrangulada em cena ou não. Mas, seja como for, o escândalo resultante tornou a nova tendência vanguardista notória no Japão, da noite para o dia.

Alguns anos mais tarde, Hijikata proporia o termo ankoku butoh (aproximadamente "dança rústica da escuridão"). Além da Ausdruckstanz, os criadores do movimento iconoclasta revelariam outras inspirações europeias: o surrealismo e o dadaísmo, e autores franceses "malditos", como Lautréamont, o Marquês de Sade, Antonin Artaud, Jean Genet.

In Transit 09 - Haus der Kulturen der Welt
'Outer limits of the red', uma das partes de 'Hibiki'Foto: Haus der Kulturen der Welt

Flerte com a morte

Por recusar-se a ser cristalizado como técnica, ou a formar escola, a natureza do butô continua escapando a definições simplistas. De Hijikata ficaram alguns aforismos tão enigmáticos quanto reveladores:

"Aprendi a inspirar e expirar, e cresci num determinado lugar. Impossível querer ensinar ou aprender essa vivência totalmente pessoal." Segundo ele, butô seria "o cadáver que quer se levantar, a todo preço e apaixonadamente"; "a luta de coisas invisíveis em meu corpo". "Minha dança nasceu da lama", comentava. Ou: "Não se esqueçam de fazer a tentativa de conviver com seus mortos".

O flerte com a morte é uma das constantes desse teatro-dança em perpétua mutação. Um componente extremo que conferiu trágica notoriedade ao grupo Sankai Juku em 1985: durante uma apresentação em Seattle, Washington, em que os intérpretes ficavam pendurados de cabeça para baixo de um alto edifício, uma corda partiu-se, e um deles precipitou-se na calçada abaixo, morrendo em seguida.

Macunaíma, hip hop, Stravinsky

Butoh Tanztheater Berlin
Dançarina Mayumi Fukuzaki em BerlimFoto: AP

Porém, cinco décadas após seu batismo de fogo em Kinjiki, o teatro-dança japonês continua vivo e disposto a continuar assimilando influências "estranhas", seja o flamenco, a capoeira ou o hip hop. Sua rede se espalha, e são numerosas as trupes de butô por todo o mundo.

Apesar da advertência de Hijikata, muitos tentam comunicar a natureza do butô. Na Alemanha, nomes como Minako Seki e Tadashi Endo (presença frequente no Brasil), lecionam regularmente. E a dançarina Sayoko Onishi dirige a Accademia Internazionale di Butoh na Sicília, Itália, em colaboração com Yoshito Ohno, filho de Kazuo.

O butô provou, igualmente, sua capacidade de ser (re)assimilado: a legendária montagem de Macunaíma de 1978, do diretor brasileiro Antunes Filho, ilustra hoje publicações sobre o butô. Nos anos 90, a diretora norte-americana Julie Taymor integrou o veterano Min Tanaka em sua montagem do Oedipus Rex de Stravinsky, ao lado de Jessye Norman.

E em 2009 o rosto de Kazuo Ohno, hoje com 102 anos de idade, é a capa de um álbum da banda britânica Antony & the Johnsons, Crying light, a ele dedicado.

Autor: Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler