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Editora

Simone de Mello20 de fevereiro de 2007

A Merve talvez seja a mais cult das editoras alemãs. Um projeto improvisado que se impôs ao mainstream e influenciou as últimas gerações de intelectuais na Alemanha.

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Projeto gráfico da Merve já é parte da memória coletiva alemã

"Na teoria, você não tem que retornar até Adão e Eva, simplesmente comece, comece pelo meio, e quanto mais você for estudando, melhor vai conseguir se orientar." Foi este conselho do filósofo francês Gilles Deleuze que norteou o alemão Peter Gente num projeto editorial singular com 37 anos de história: a editora Merve, sediada em Berlim.

Exemplo de um projeto editorial movido pelo faro de editores-leitores ávidos, a Merve de fato representou um enclave da filosofia francesa na Alemanha, numa época em que Michel Foucault e Jean Baudrillard eram considerados irracionais e o termo "discurso" soava reacionário aos ouvidos da esquerda acadêmica. Muito antes de o pós-estruturalismo francês romper tardiamente a resistência da razão filosófica na Alemanha, a pequena editora no bairro berlinense de Schönefeld publicava, numa espécie de guerrilha intelectual, Deleuze e Félix Guattari.

Após 37 anos de trabalho e a publicação de 300 títulos, Peter Gente se afastou recentemente de sua criação, confiando-a a três amigos. Embora a Merve continue a existir, é certo que seu perfil – altamente personalizado por Gente e Heidi Paris, co-editora falecida em 2002 – deverá mudar.

Da Discussão Marxista ao Discurso Merve

"O que a gente não entendia nos fascinava – e a loucura que Foucault e Deleuze/Guattari descreviam, ela estava no ar, a realidade já não era mais tão clara assim", relembra Peter Gente a virada de um programa inicialmente marxista para um itinerário mais especulativo que tangenciava a psicanálise. A chamada Discussão Marxista Internacional, que marcou as origens de um grupo editorial enraizado no movimento de 68, viria a se tornar, após a dissolução do grupo em 1977, a editora Merve, e a sigla passaria a significar Discurso Merve Internacional.

Peter Gente, Merve Verlag Berlin
Peter GenteFoto: Nina Meinhold

"A gente morava numa república em Berlim, mas se orientava mais pelo maio de 68 em Paris e pelo movimento geral da França, que era um pouco diferente do da Alemanha. Ou seja, menos dogmático e menos fixado nos estudantes. Na França, e sobretudo na Itália, os operários eram bem mais integrados. E era para lá que a gente olhava, pois o que nos interessava eram novas formas de vida e trânsito. Foi por isso que a gente acabou com a dissociação de trabalho braçal e mental na editora. Minha parceira Heidi Paris precisou aprender a imprimir, quando nos conhecemos, em 1975", relembra Peter Gente, em entrevista ao diário berlinense tageszeitung.

Talvez seja este caráter artesanal que singularize talvez a mais cult das editoras alemãs. Seu projeto gráfico pode ser reconhecido à distância e se manteve atual, com o charme da simplicidade low budget e do pequeno formato com denso conteúdo. Artesanal também o programa, com uma escolha personalizada dos escritos a serem propagados e uma relação muitas vezes pessoal entre editores e autores.

Faro para o presente

Após o pós-estruturalismo francês ter se tornado mainstream na Alemanha e Foucault e Derrida passarem a ser publicados por grandes editoras, o faro da Merve não perdeu nada de sua contemporaneidade.

De ouvido já abertos à cena musical contemporânea de Berlim Ocidental na década de 80, quem antes publicava John Cage passou a dar espaço para a cultura DJ. A permeabilidade da Merve ao presente já fazia parte de seu programa inicial, pois a linha de publicações menores ("menores" apenas em extensão e formato) permite se reagir com maior rapidez e espontaneidade ao que está sendo debatido e escrito no momento.

Mantendo sua linha ensaística de escritos mais breves, a Merve continua destacando temas sintomáticos do presente, tendo se aprofundado nos últimos anos em teoria de mídia, novas tecnologias, música e cultura pop. Com a saída de Peter Gente, a editora certamente não será a mesma, mas – dada a influência que a editora exerceu sobre as novas gerações de intelectuais desde então – uma certa continuidade não é nada improvável.