Crime no Rio escancara cultura do estupro no Brasil
27 de maio de 2016O caso de estupro coletivo envolvendo uma adolescente de 16 anos numa favela do Rio de Janeiro provocou indignação em vários setores da sociedade brasileira e levantou um debate sobre a banalização da violência contra a mulher e a existência de uma cultura do estupro no país.
O episódio foi divulgado nesta quarta-feira (25/5) e, segundo a vítima, envolveu 33 homens. Cenas do crime viralizaram na internet depois da publicação de um vídeo que mostra a vítima nua, com marcas de violência. Após a divulgação, usuários de redes sociais publicaram centenas de postagens condenando o crime. Artistas e a presidente Dilma Rousseff se manifestaram.
Outros usuários aproveitaram para debater a situação das mulheres na sociedade. Vários estamparam a frase "pelo fim da cultura do estupro" em suas fotos de perfil no Facebook. Alguns aproveitaram para denunciar projetos conservadores no Congresso, que dificultariam o atendimento a vítimas de violência sexual.
A tempestade gerada pelo episódio fez com que o jornal Times of India afirmasse que o "Brasil encara sua própria crise de Nirbhaya", uma referência à estudante indiana que foi estuprada em um ônibus em Nova Déli em 2012 – crime que provocou indignação na Índia.
Um crime corriqueiro
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o Brasil registrou em 2014 ao menos 47.646 casos de estupros. Mas o número provavelmente foi muito maior, já que a subnotificação é elevada. Estimativas apontam que o número real deve se situar entre 136 mil e 476 mil casos por ano.
Mesmo o estupro coletivo no Rio de Janeiro não foi o único revelado esta semana. Na última sexta-feira (18/05), uma jovem de 17 anos foi encontrada seminua, amordaçada e com sinais de violência sexual na cidade de Bom Jesus, Piauí. De acordo com o delegado responsável pelas investigações, um jovem de 18 anos e quatro adolescentes entre 15 e 17 anos – conhecidos da vítima – são suspeitos de estuprarem a adolescente.
Para a representante no Brasil da ONU Mulheres, Nadine Gasman, esses crimes mostram um lado bárbaro do país. "Não são casos isolados. São uma manifestação da misoginia e do machismo da sociedade e da visão patriarcal de muitos homens, que veem as mulheres como meros objetos que podem ser usados. Existe uma cultura do estupro no Brasil", afirmou à DW. "Nesse caso do Rio temos homens que encaram o estupro como uma mera diversão de grupo, que não veem nada de errado nisso e ainda se orgulham."
O que fazer para mudar a situação
Gasman também afirma que a cultura do estupro se manifesta de forma mais ampla, por exemplo na culpabilização da vítima. No caso do Rio, vários usuários da internet apontaram que a jovem estava bêbada e "havia dado mole". Uma pesquisa do Ipea divulgada em 2014 mostrou que 26% dos brasileiros concordam total ou parcialmente com a afirmação de que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas".
A representante da ONU Mulheres cita que o Brasil teve alguns avanços na proteção das mulheres, especialmente na formulação de leis. "Mas ainda falta aplicá-las. Por isso é importante a tolerância zero a todas as formas de violência contra as mulheres e a sua banalização", afirmou.
Segundo ela, também é preciso mudar a forma como muitos homens brasileiros encaram as mulheres. "É um trabalho que precisa envolver a escola, a mídia, as famílias. Eles precisam ter noções sobre os direitos das mulheres, precisam aprender a se colocar no lugar delas", afirma. "É cedo para dizer se esse caso vai provocar um engajamento como o que ocorreu na Índia, mas é preciso aproveitar esse momento."
Fórmula para a barbárie
O filósofo Roberto Romano também encara o episódio do estupro no Rio como uma barbárie, mas afirma que o caso também escancara outros problemas, além do machismo.
"Existe uma falsa noção que remonta à Era Vargas de que o brasileiro é um povo pacífico. Não é. Toda a sociedade brasileira é violenta. Nesse caso do estupro no Rio, temos um caldeirão para isso: um lugar onde o Estado mal existe e onde valores tradicionais ainda imperam, onde um grupo de jovens não inseridos na sociedade e que enxerga o narcotráfico como um meio para se destacar – e que encara todo tipo de violência como algo normal. Nesse contexto, mulheres, negros e homossexuais são vistos como seres inferiores. Esses jovens encaram as mulheres como um bem material, um mero troféu. É uma fórmula para a barbárie", afirmou.
Para Romano, a solução para casos extremos de violência em regiões marginalizadas passa pela presença do Estado. "Um começo seria trazer o Estado para os lugares onde isso acontece. O Estado também deve assumir seu princípio de responsabilidade sobre vítimas e até criminosos", afirma. "Mas isso não é uma coisa fácil", ressalva.